Cada povoado é um universo de almas. Escrever sobre ele é escrever sobre o mundo, afiançou Fiódor Dostoiévsk (1821-1881). Mas a frase original “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” é de Liév Tolstói (1828-1910), tão russo e talentoso quanto o outro. Em cada esquina o atento andarilho vê o inusitado e ouve sabenças que contrariam a lógica e desafiam o bom senso.
Hamlet observa a Horário que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia; assim Machado de Assis (1839-1908) inicia o conto “A Cartomante”. O nosso Machado, mesmo sendo grande conhecedor da obra de William Shakespeare (1564-1616), alterou ligeiramente a afirmação original “há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”.
Há humores e rumores, gente que espalha boatos e mistifica fatos. Como separar o joio do trigo? Apenas uma citação bíblica por se saber que o joio viceja antes do trigo?
Mais apropriado seria dizer separar as pedrinhas do feijão, pois em terra ressequida não se planta trigo e, “em se plantando”, nada vicejará.
Joio humano, gente ruim, existe em todo lugar, em cada pedaço do chão; se gramínea, apenas entre os ramos do trigo.
E os que dizem sem dizer, falseando parábolas sobre um acontecido? De um assovio do vento urdem enredos dos mais impossíveis. É a arte do maldizer, das fabulações do disse que disseram. Ah, janelas indiscretas, que erros cometemos para sermos fatiados pela maledicência?
Há exceções, claro. Parceirinhos das bolas de meia, de gude e de pescarias no Gorutuba que já foi rio piscoso, exercem a fina ironia no dizer de cada caso. Um deles é o João Muriçoca, que espeta com a ponta da língua a linhagem de cada família. Ele sempre encontra uma mancha na pintura, uma pilastra bamba na estrutura dos lares. Não diz direto, insinua, deixa frases incompletas; “ri à socapa”, escreveria Machado de Assis.
E assim, para quem entende, um patriarca é colocado em suspeição, uma mulher resvala para o lodo da falação. Ouvir João Muriçoca é um aprendizado sobre a alma, dele e dos outros, sejam ou não assombradas. De menino ele driblava os rigores da professora se fingindo de sonso e depois exibia argúcia em qualquer estripulia que se pudesse imaginar.
Líder ou filósofo? Até hoje não sei, embora não me canse de ouvi-lo. Se o tempo e a distância não afastam almas e aproximam corações, “a alegria evita mil males e prolonga a vida”, deixou escrito Shakespeare.
– Fulano é rico? Só se for de dívidas.
E assim João Muriçoca detona a arrogância de um para logo em seguida medir com o canto do olho o bamboleio de uma senhora de respeito, que passa embevecida com o que lhe dizem pelo celular.
– Deve estar falando com o cara.
– Com o marido?
– Que marido que nada! Marido é marido e o cara é o cara.
Às vezes dá vontade de “riscar o nome dele da minha agenda”, como cantam esses esganiçados fabricados pela mídia, mas o João Muriçoca sempre resgata minha estima com uma frase de efeito, um dito espirituoso.
João é um mistério: sitiante, negociador de carros, bois, conhece os atalhos para uma vida sem luxos, mas também sem sobressaltos. Sabe viver, é o que sempre diz. Ele contrasta com outro remanescente de travessuras.
Zé da Guga é das leituras, cita autores, tergiversa de uns, enaltece outros. São diferentes, mas iguais, um completa o outro e ambos me atraem. Conversar com um é deleite, com os dois na mesma hora é prenda dobrada. Divergem, ensaiam discussões, o debate rende risadas, aprendizados da psique humana. Nem Freud ou Jung para destrinchar. Freud, o Sigmund (1856-1939) chegaria perto, ele que de um complexo a outro desafiou preconceitos bem conservados. E Carl Jung (1875-1961), aos 11 anos, já falava de uma névoa que insinuava os mistérios da mente. Acabou navegando no inconsciente coletivo, mapeando personalidades de seres extrovertidos e introvertidos.
A estupidez da intolerância separou os dois. Freud, criador da Psicanálise, nasceu em família judia e Jung foi acusado de se aliar ao nazismo e ser anti- semita. Esse é um dos estragos que uma guerra faz: ressuscitar preconceitos e acirrar ódios.
Voltando ao vale das bananas, acho que os dois amigos jogaram no liquidificador das conveniências o id, o ego e o superego e do sumo extraíram um desvio para a máxima freudiana de que “o desejo sexual é a energia motivacional primária da vida humana”
Não deixa de ser um princípio dos melhores para quem professa o machismo explícito. Sem querer, atuando sob a influência de vivências sedimentadas e do habitat, os dois se completam, não custa repetir.
Outro dia Zé da Guga revelou os atalhos que usou para tornar possível a conquista de uma parceira arredia. Depois de mil e uma artimanhas, ele finalmente derrubou a muralha dos negaceios da desejada ao citar os versos “Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma./A alma é que estraga o amor./Só em Deus ela pode encontrar satisfação./Não noutra alma./Só em Deus – ou fora do mundo./As almas são incomunicáveis./Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo/porque os corpos se entendem, mas as almas não.”
Os versos são de Manuel Bandeira (1886-1968), mas o nome da mulher – boa católica praticante – ele não disse, por cavalheiro que é. E se tivesse dito, eu não revelaria, por discreto que sou.
Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).