Política

Panorama histórico e projetivo da guerra na Ucrânia entre OTAN/EUA e Rússia | Flávio Ricardo Vassoler

Projeções a partir da atual guerra na Ucrânia, cujas forças armadas são apoiadas militar e economicamente pela Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e pelos Estados Unidos (EUA), precisam levar em conta os antecedentes geopolíticos do conflito.  

 

No período final da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre o fim da década de 1980 e o início dos anos 1990, consta que James Baker (1930 – ), ex-Secretário de Estado dos EUA, teria prometido (sem que um acordo formal tivesse sido ratificado) ao então Secretário Geral do Partido Comunista da URSS, Mikhail Gorbatchov (1931 – ), que, após a eventual dissolução da esfera soviética de poder sobre os países que compunham a antiga Cortina de Ferro, segundo o termo cunhado pelo estadista inglês Winston Churchill (1874-1965), a OTAN não avançaria um metro sequer para além de seu marco mais oriental, que, durante a Guerra Fria, se situava na delimitação entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental.  

 

Do início dos anos 1990 até à contemporaneidade, no entanto, as forças da OTAN espraiaram-se até à fronteira da Federação Russa, com a adesão de boa parte dos países da antiga Cortina de Ferro, tais como a Polônia, a República Tcheca, a Hungria, a Bulgária, entre outros, e mesmo de antigas repúblicas da URSS que fazem fronteira com a Rússia, tais como a Estônia, a Letônia e a Lituânia.  

 

Em 2008, Mikheil Saakashvili (1954 – ), então presidente da Geórgia, negociava a adesão do país à OTAN, quando a Rússia, à época capitaneada pelo presidente Dmítri Medvedev (1965 – ), cuja eminência parda, como primeiro ministro, era o atual presidente Vladímir Pútin (1952 – ), enviou tropas para, segundo a versão russa, garantir a segurança dos russos étnicos que viviam na região da Ossétia do Sul. A atuação militar contra a ex-república soviética da Geórgia, aliada às pressões exercidas pelo Kremlin, impediu que o país, até o presente momento, aderisse à OTAN.  

 

A Ucrânia, maior país da Europa — a Rússia, maior país do mundo, situa-se na Europa apenas parcialmente — e segunda maior ex-república soviética, vinha flertando com a União Europeia (UE) e a OTAN há anos. Quando o então presidente ucraniano Viktor Ianukovitch (1950 – ), sob forte pressão do Kremlin, anunciou que não daria sequência aos trâmites para o país tornar-se membro da UE e da OTAN, movimentos da sociedade civil ucraniana aliados ao Ocidente, entre os quais grupos de extrema direita como o Svoboda (Liberdade) e o Pravy Sektor (Setor de Direita), levaram a cabo uma revolução colorida, a partir da praça Maidan, no centro da capital Kiev, que depôs o presidente Ianukovitch, exilado na Rússia desde então. Dada a quebra da normalidade constitucional pela revolução laranja, que contou com amplo apoio dos EUA, uma vaga de conflitos passou a ocorrer entre as forças a oeste da Ucrânia e as forças a leste do país, simpatizantes da Rússia. Após a anexação da Península da Crimeia pela Federação Russa no início de 2014 — os russos afirmam que a Crimeia deixou de fazer parte da Ucrânia após a realização de um referendo —, as regiões de Donetsk e Lugansk, desde então potencialmente separatistas, tornaram-se intensos focos de disputa militar.  

 

Em 2007, numa conferência de segurança realizada na cidade bávara de Munique, na Alemanha, Vladímir Pútin criticara, diante da então primeira ministra alemã Angela Merkel (1954 – ), a política unilateral dos EUA ao redor do mundo, com foco na expansão da OTAN em direção ao Leste Europeu. Então e atual ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov (1950 – ) ponderou que o principal objetivo de Munique era “chamar a atenção para o fato de que nós já não nos guiamos pelos estereótipos da Guerra Fria” (1). Pútin e Lavrov, nesse sentido, argumentavam que a dominação exclusiva dos EUA sobre o mundo, que passou a se dar após o colapso da URSS, não daria mais a tônica num mundo que já demandava a multipolaridade, isto é, a aceitação de que outros atores globais, como a própria Rússia e o colosso econômico da China, precisavam ser levados em consideração para a engenharia das relações internacionais.  

 

Pouco menos de seis meses antes da invasão russa à Ucrânia, os EUA retiraram suas forças armadas do Afeganistão, dando fim à ocupação imperialista que se prolongava por 20 anos (2001-2021). A (suposta) guerra ao terrorismo teve como saldo o retorno do fundamentalismo taleban ao poder e a avaliação, por parte da Rússia e China, de que os EUA, qual um colosso em declínio, já não conseguem manter sua política de polícia mundial.  

 

Vale frisar que, semanas antes da invasão russa à Ucrânia, Rússia e China firmaram uma aliança, que, para o ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil Celso Amorim (1942 – ), “é o fato mais importante desde o fim da Guerra Fria e a dissolução da URSS” (2). O estreitamento das relações entre a Rússia, em vários setores bélicos a maior potência militar do planeta, e a China, país que, dentro em breve, ocupará o posto de maior potência econômica do mundo, representa o maior enfrentamento à arquitetura institucional e geopolítica moldada pelo poder e a influência dos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando, sozinho, o país detinha metade da riqueza do planeta.   É nesse sentido que, a despeito do sumo sofrimento a que vem sendo submetida a população ucraniana, a guerra no país pode ser analisada como um primeiro e trágico ato no confronto exacerbado entre Ocidente e Oriente para redesenhar os rumos do poder global.  

 

Após a invasão russa à Ucrânia, os EUA e seus aliados na Europa Ocidental estabeleceram um pacote de sanções econômicas contra o país capitaneado por Vladímir Pútin sem precedentes na história mundial. Ademais, os EUA vêm procurando solapar a venda de gás russo à Europa, propondo a venda de parte de seu estoque de gás liquefeito (a valores mais altos). A OTAN, capitaneada pelos EUA, também demanda um incremento dos gastos militares por parte de seus membros, e bem podemos deduzir que o complexo industrial-militar dos EUA será o grande beneficiado por tais medidas. Assim, as tomadas de posições dos EUA em termos de política externa, ambivalentes por excelência, procuram fincar território na Europa como seu bastião de influência no Atlântico Norte, ao mesmo tempo em que a economia do país se vê municiada com o maior dispêndio militar por parte de seus parceiros estratégicos. 

 

Para a Rússia e a China, por sua vez, a guerra que os EUA movem por procuração na Ucrânia têm implicações diversas e estruturais.  

 

No momento em que este texto está sendo escrito (julho de 2022), as forças russas já estabeleceram uma conexão entre as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk com a Crimeia; já dominaram completamente a situação em Lugansk e, agora, centram ofensivas contra os ucranianos que ainda se encontram em Donetsk. Assim, se a Rússia se sagrar vitoriosa no conflito, é possível que a Ucrânia, como país independente, já não tenha acesso ao mar Negro. Ademais, a Rússia estabeleceu que o pagamento pelas remessas de gás que continuam a chegar a alguns países da Europa seja feito em rublo, o que contribuiu para fortalecer a moeda russa no mercado mundial. As sanções impostas pelo Ocidente também aceleraram a integração da Rússia com parceiros orientais, nomeadamente com a China.  

 

Para a China, uma vitória russa na Ucrânia implica o estabelecimento de um bastião de seu aliado estratégico contra a expansão da OTAN em direção à Ásia Central e às cercanias de seu território. Vale lembrar que, em recente reunião de cúpula, a OTAN aproximou-se da Austrália e do Japão como países que podem contribuir para o esforço de tensionar a crescente influência da China no Pacífico. Além de tal fator militar, o estreitamento da aliança com a Rússia e o adensamento das relações econômicas tendem a acelerar a eclosão do padrão yuan, tendo, justamente, a moeda chinesa como parâmetro para transações internacionais, em contraposição ao padrão dólar elevado à condição de âncora do mundo desde a famosa conferência que reuniu as potências aliadas em julho de 1944 na cidade estadunidense de Bretton Woods.  

 

No panorama que procuramos esboçar, discernimos que, tanto em seus antecedentes quanto em seus cenários potenciais e futuros, a guerra na Ucrânia que contrapõe OTAN/EUA à Rússia é um conflito multifatorial, que transcende o trágico sofrimento da população ucraniana com irradiações para os alicerces geopolíticos mais vastos. Depois de 600 anos de dominação atlântica do planeta, num processo que teve início com as navegações ultramarinas europeias, o eixo de poder econômico desloca-se cada vez mais do Atlântico para o Pacífico, e, ainda uma vez e com suma tragicidade, a guerra desponta como a parteira de um novo tempo histórico, com consequências inauditas e catastróficas, quando nos lembramos de que as maiores potências nucleares estão envolvidas no conflito.  

Referências:

 

  • “Discurso de Pútin em Munique foi o acontecimento do ano, afirma governo russo” (portal Globo; reportagem publicada em 29/12/07): http://glo.bo/3c3nEua  


  • “Aliança entre Rússia e China é o fato mais importante desde o fim da Guerra Fria e a dissolução da URSS, diz Celso Amorim” (portal Brasil 247; reportagem publicada em 11/02/22): https://bit.ly/ 3yYzI9f 

 

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber e psicanalista em formação, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor do romance O evangelho segundo talião (nVersos, 2013); do livro de ensaios e aforismos Tiro de misericórdia (nVersos, 2014); da tese Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018); do livro de ficções, crônicas e ensaios Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019); e do romance de formação em diálogos Metamorfoses: os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021).

Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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