Cultura

Os Simões da Serra do Gabão e as histórias de família | Adelmar Azevedo Régis

Assistindo a um interessante curso sobre o Holocausto e sobre a criação do Estado de Israel, ministrado pela famosa professora Zarinha, tive a satisfação de conhecer o engenheiro civil e exímio pianista Marcone Pereira Simões, paraibano de Teixeira, mas cuja família paterna tem origem no entorno das cidades de Canhotinho, Quipapá, Pau Ferro, Panelas e Jurema, no interior de Pernambuco, onde os Simões chegaram a possuir cinco engenhos de açúcar e viveram seu apogeu econômico entre 1875 e 1925.

 

Conversando com Marcone, descobri que havia publicado recentemente seu livro de estreia na literatura, intitulado “Os Simões da serra do Gabão”. Utilizara, como inspiração para a escrita, arquivos de áudio e imagem que descreviam as histórias do tronco familiar paterno, narradas por membros da própria família e repetidas muitas vezes entre gerações. O livro tinha por objetivo exatamente narrar alguns fatos da vida de sua família, que seu autor julgava interessantes, para que não só os descendentes do clã Simões pudessem conhecer suas origens, mas para resgatar a memória de seus antepassados ilustres.

 

Contar histórias sempre foi uma característica do ser humano, mesmo antes da existência da linguagem escrita. Os contos e canções ancestrais eram transmitidos dos mais velhos aos mais novos junto à fogueira.

 

Interessado em conhecer as histórias dos Simões, logo adquiri a obra, editada pelo próprio autor em 2022, e, de bom grado, como faço com a grande maioria dos livros escritos por amigos, propus-me a, concluída a leitura, comentá-la, sem o propósito de formular uma crítica literária, para a qual eu não tenho nenhuma aptidão ou formação, mas apenas para expressar quais foram os sentimentos que a leitura do texto me trouxe e compartilhar minhas impressões sobre o livro, confiante de que o que me falta como leitor erudito, ao menos, sobra-me em voracidade e gosto pela boa leitura.

 

O interessante livro de Marcone Simões, com ilustrações de Cavani Rosas, tem como temática as histórias e causos pitorescos da sua família, os Simões. São, nas palavras do próprio autor, “relatos fragmentados que a tradição oral da minha família preservou”. São aventuras que têm como protagonistas seu bisavô, o abastado patriarca, senhor de engenho e líder político regional Antônio José Apolinário Simões, capitão de patente, chamado pelos filhos e netos apenas de Pai Simão, um homem robusto, com fartos bigodes, voz poderosa, de forte personalidade e destacada nobreza, casado com a sisuda sinhá Antônia; Belmiro e Dedé, seus avós; seu generoso e alegre pai Manoel Pereira Simões, conhecido por Adelfo, e o próprio literato, que nos descreve alguns fatos singulares de sua vida, notadamente sua infância e adolescência.

 

Os locais onde se passam as deleitosas peripécias dos Simões são os engenhos de propriedade da família: o portentoso Engenho Bananeiras, o Engenho Laranjeiras, o Engenho Roncador. Neste universo particular dos engenhos de açúcar, há de tudo: a casa grande, símbolo do poder e da autoridade do senhor de engenho, escravos e ex-escravos, a senzala, as mucamas, um feitor, os capatazes, a capela, um padre estrangeiro, representando a Igreja Católica, a fé cristã, os animais, as festas, as cavalgadas, o caudaloso Rio Piranji, os violeiros, as danças, as músicas, as festas tradicionais, as culinárias fartas, as bebidas, etc.

 

Os eventos narrados são interessantíssimos, alguns deles chegam a ser surreais mesmo, quase um realismo fantástico. Narra o autor, dentre outros fatos marcantes, a aparição e o arrependimento de um jagunço no Engenho Bananeiras; as caçadas de Pai Simão; uma incrível e perigosa peleja do patriarca contra duas cobras venenosas; o rapto da pequena criança Dedé (que viria a ser a avó do autor) por índios da tribo Cariri; as visões de assombrações e de um barrão que sobe na garupa de um cavalo, que é montado pelo Tio Quinca, tio avô do autor; uma jovem virgem e bela, filha do Capitão Simões, cujo corpo não se decompõe, mesmo passados quase dois anos do falecimento, por se tratar de uma provável santa; o encontro de Adelfo com um misterioso cigano e ainda a comovente história da anciã, que, após uma noite de intensa alegria, regada a muita dança, cachaça e ingestão de gorduroso prato da culinária do Nordeste, “com um sorriso de felicidade no rosto, ajoelhou-se, deitou-se e morreu”.

 

São histórias do Nordeste, que narram a família patriarcal e a atmosfera da vida privada, em torno dos engenhos de açúcar da família, que lembram as ricas obras de José Lins do Rego, notadamente os romances aos quais deu a alcunha de “Ciclo da cana-de-açúcar” e o livro “Casa Grande & Senzala”, do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre.

 

Ao concluir a leitura, não pude deixar de comparar as histórias fantásticas e os relatos pessoais narrados pelo autor paraibano com aquelas contadas por Edward Bloom, personagem interpretado por Albert Finney no extraordinário filme “Big Fish”, que recebeu no Brasil a tradução para “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas”, baseado no best seller Big Fish: A Novel of Mythic Proportions, de Daniel Wallace e dirigido por Tim Burton e roteirizado por John August. Na trama, Edward Bloom, um antigo vendedor itinerante do sul dos Estados Unidos, é um grande contador de histórias, que fascinam todos os ouvintes, por misturarem realidade com fantasia e ficção. O protagonista se encontra em fase terminal de câncer. Seu filho, um jornalista interpretado por Billy Crudup, sempre duvidou dos contos fantásticos narrados pelo pai, acreditando que todas elas eram mentirosas, o que acarretou um distanciamento entre os dois, mas acabou se surpreendendo, ao final da obra cinematográfica, por saber que as narrativas e contos tantas vezes repetidos por seu genitor, por mais incrível que pareçam, eram todas verdadeiras, ainda que preenchidas por aspectos fantasiosos. Quanto de semelhança existe entre Edward Bloom e Manoel Pereira Simões?

 

Ao transformar em livro os maravilhosos casos que seus ascendentes de fato viram e viveram, mesmo os eventos que parecem mesclar real com fantasia, o autor assegura que tudo aconteceu mesmo, não se tratando de sonho ou realismo mágico. Aí reside o aspecto mais interessante da obra, para a qual recomendo a leitura.

 

Para Marcone Simões, um ouvinte atento aos tantos momentos de storytelling no clã Simões, foi fácil transformar tudo que lhe foi narrado e que ele escutou com emoção em um livro, permitindo que outros passem adiante as tradições orais e se eternizem as lembranças, evitando que se percam para sempre nas brumas do tempo. Enfim, o narrador, com domínio da arte e da técnica narrativa, não deixou que ocorresse a situação dos versos de Vital Farias, em sua bela música “Canção em Dois Tempos”, quando diz “E ninguém nem percebia/Que o real e a fantasia/Se separam no final”.

 

 

Fotografia de Adelmar Azevedo Régis

 

Advogado. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ex-Procurador Geral do Município de João Pessoa (PB). Ex-Procurador Geral do Município de Conde (PB). Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça da Paraíba. Sócio de Régis & Ramalho Advogados Associados. Membro da Academia Paraibana de Letras Jurídicas. Assessor Especial da Procuradoria Geral da República. Autor do livro “Pagamento por Serviços Ambientais: uma promissora ferramenta de política ambiental”, coautor do livro “Precedentes obrigatórios do Supremo Tribunal Federal sistematizados, selecionados e organizados por temas relevantes” e coautor e organizador dos livros “O direito e as séries – Temporada 1” e “O direito e as séries – Temporada 2”.

E-mail: adelmar@iainfo.com.br ou azevedoregisadelmar@gmail.com



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