Cultura

Vários autores em busca de uma personagem | Flávio Wolf de Aguiar

Q Absurdo! é o título do 13º livro publicado pelo multipremiado autor paulistano Luiz Eduardo de Carvalho, sua terceira dramaturgia, lançada recentemente pelo selo Opera Editorial, a partir da seleção em sua chamada de originais em 2023.

 

Trata-se de uma bem humorada peça teatral que reúne em cena alguns consagrados autores do Teatro do Absurdo: Eugène Ionesco, Fernando Arrabal, Jean Genet, Samuel Beckett e o precursor do gênero, Luigi Pirandello, todos convocados pelo autor brasileiro Qorpo Santo – considerado por alguns como um anacrônico antecipador deste tipo de dramaturgia – com a intenção de debaterem soluções para a situação absurda de inação que assolou o Brasil no período que correspondeu à pandemia do COVID e ao desastrado governo de Jair Bolsonaro. Um último personagem, o Escriba Sentado – tirado da estátua egípcia de 2500 a.C. que se encontra no Louvre –, junta-se ao sexteto a fim de registrar tudo quanto é deliberado. 

 

Como é de se esperar, dadas as características dessa corrente teatral, a ação e as próprias resoluções dão lugar à inércia e à falta completa de perspectivas diante do absurdo imposto pela realidade, delatando, com refinada ironia, o imobilismo que parece ter se apossado dos brasileiros e de suas instituições. Ainda assim, temas pungentes da atualidade nacional e mundial são debatidos em meio a inúmeras citações metalinguísticas que envolvem as obras dos envolvidos.

 

Em seu ensaio “A Personagem no Romance”, no livro A Personagem de Ficção (1968), diz o professor Antonio Candido que “o enredo existe através das personagens, as personagens vivem no enredo”. 

 

Mais adiante, pontua: “{A organização do contexto} é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor, e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e mais atuantes do que os próprios seres vivos”.

 

Bem, e se não houver enredo? Haveria ainda personagens?

 

Antonio Candido está falando de personagens no romance. No mesmo livro, ao abordar “A personagem no teatro”, diz o professor Décio de Almeida Prado que a diferença entre os dois gêneros consiste na dispensa do narrador. No teatro ou no texto dramático, o enredo acontece através das personagens e unicamente através delas. Graças aos atores, essas têm uma presença física antes mesmo de falarem. E há três maneiras de saber algo sobre elas: através do que falem (ou deixem de falar), do que façam (ou deixem de fazer), e através do que as outras falem delas (ou deixem de falar).

 

Mas volto à pergunta que não quer calar: e se não houver enredo, mas um anti-enredo, isto é, um nó permanente sem desenlace? Haveria ainda personagens? Ou seja, seres pesadamente vivos que revelam mais sobre os vivos do que estes mesmos por vezes são capazes?

 

Esta é a dúvida sobre a qual repousa (repousa?) este texto de Luiz Eduardo de Carvalho e de sua admiração pelo Teatro do Absurdo, conforme a expressão consagrada pelo crítico Martin Esslin em seu livro homônimo, publicado em 1961. 

 

Seis autores de algum modo ligados a este gênero teatral se reúnem a chamado de um desconhecido “Ele”, com um objetivo nebuloso. Dois deles estão sob a rubrica de serem “precursores”: o italiano Luigi Pirandello e o brasileiro Qorpo-Santo, aquele do século XX e este do XIX. Alguns coadjuvantes os acompanham: um Escriba que tudo registra, o pessoal da técnica da montagem e, ah sim, o público na plateia.

 

E o que acontece no Teatro do Absurdo? Nada. Este é o drama: o nada que é tudo e o tudo que é nada.

 

Então haverá ainda personagens? Talvez não. Haveria “personas”, a palavra latina que designava as máscaras usadas pelos atores no teatro da Roma antiga.

 

A tentação é muito forte: considerar que a peça gira em torno de farsantes que decoraram os papéis e trechos dos dramaturgos que mais desencarnam do que encarnam, para passar o tempo e ganhar a vida.

 

Uma metáfora da nossa sociedade? Quem sabe?  Sem ser panfletária (felizmente!) a peça de Carvalho é uma metáfora contundente do Brasil pós-golpe de 2016 e eleição do Grande Farsante que desossou o papel de Presidente da República, de 2019 a 2022.

 

Sendo este um prefácio, não me cabe antecipar demasiado sobre o que, afinal de contas, se passa ou não se passa neste encontro mirabolante de máscaras de espaços e tempos tão diversos. Fico com o comentário de uma delas, que vale como um vaticínio sobre o nosso país e o nosso tempo:

 

“Vocês não acham que está na hora de acontecer alguma coisa”?

 

SOBRE O AUTOR

 

Luiz Eduardo de Carvalho foi professor, publicitário e assessor de imprensa, jornalista e gestor cultural nos âmbitos público, particular e do terceiro setor. Dedica-se exclusivamente à produção literária desde 2015, já recebeu mais de 100 prêmios literários e publicou: O Teatro Delirante, Retalhos de Sampa, Sessenta e Seis Elos, Frasebook, Xadrez, Quadrilha, Evoé, 22!, O Pirata Grilheta e os Dragões do Mar, Um Conto de Réis (e de Rainhas), Crônicas do Ofício, Curtas-metragens, Cabra Cega, Q Absurdo! e Multiversos. No prelo: Bicho-da-Seda e Mãos de Deus – Biografia do Padre Júlio Lancellotti. 

 

Serviço: exemplares com dedicatória podem ser adquiridos por e-mail ou por contato nas redes sociais do autor:

 

luizeduardodecarvalhoescritor@gmail.com

facebook.com/luizeduardo.decarvalho/

instagram.com/decarvalholuizeduardo/

 

 

Fotografia de Luiz Eduardo Carvalho

 

Fotografia de Flávio Wolf de Aguiar

 

Flávio Wolf de Aguiar: professor aposentado de Letras na USP, com pós-Doutorado na Universidade de Montreal, atuou também como jornalista, colunista e editor de diversos veículos de imprensa. Hoje é correspondente em Berlim.



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