Cultura

Os pequenos pés de lótus | Daniela Pace Devisate

Kumiko Fei Ling era a filha única de um digno servidor público da era Song, um velho bastante Venerável, com uma longa barbicha branca, que amava seu lago de nenúfares, sua suave esposa e a sabedoria de Confúcio. Tendo lido várias vezes os Quatro Livros e sabendo aforismos de cor, utilizava-se frequentemente deles, em momentos propícios. A menina era tão amada que seu pai nem se lembrava do desgosto de não ter nenhum herdeiro. Ela era sua alegria, o tesouro de sua longa vida, o diadema principal de sua coroa invisível de patriarca. O velho não havia economizado em sua educação e Kumiko enchia a casa com o som de seu instrumento musical e com suas belas caligrafias .

 

Na pequena aldeia onde tinha passado a infância, ela era conhecida como Pequenos Pés de Lótus, e realmente, seus sapatinhos bordados eram os menores de toda a região, se assemelhavam a sapatinhos de boneca, não uItrapassando os sete centímetros.

 

Isso porque sua zelosa mãe havia amarrado seus pés durante a maior parte da sua infância, numa arte mutilatória parecida com a técnica do bonsai.

 

Sua mãe era uma mulher de formação esmerada e praticava essa arte com as plantas da casa, produzindo lindos minipêssegos e outras espécies em tamanho reduzido, servidos em pratos de porcelana finíssima, pintada à mão. Assim como produzia, com esmero e paciência os diminutos e suculentos frutos, assim garantia um vantajoso casamento para a felicidade da filha. A pequena no começo, chorava muito, reclamava de dor, e de não poder correr pelos pátios internos, nem perseguir pandorgas coloridas e outras brincadeiras que dependiam da mobilidade dos seus pezinhos. O coração da mãe se apertava, ela abraçava a garotinha, alisando seus cabelos negros e macios , que passavam da linha da cintura e que ela trançava todas as manhãs. Acalentava com voz tão doce, mas sendo tão grave, ao explicar que era necessário, que um dia Kumiko ia entender e agradecer a ela. Kumiko chegava a se envergonhar por ter reclamado da dor. A sua mãe era tão boa para ela! E o pai,então…! Doces , presentes, tudo que desejasse! Uma vez, de uma das viagens, trouxera um pássaro de prata, de olhos de 

jade, que tinha um mecanismo interno e cantava e mexia as asas. Todos admiravam sua família e algumas meninas a invejavam. Ela então , finalmente , acostumou-se a obedecer. Quando completou dezoito, a casaram, com um rapaz escolhido por seu pais, que por sua vez procuraram os certeiros serviços da mais cara casamenteira dali. Desde o início , todos sabiam que Kumiko teria os melhores pretendentes , os mais cultos e ricos, afinal seus pezinhos eram minúsculos e perfeitos. Mesmo que ela quisesse fugir, eles não conseguiriam levá-la muito longe. Certamente esse fato contava muitos pontos e a esperta casamenteira soube tirar o melhor partido da situação. 

 

O banquete de casamento foi suntuoso, e as vestes nupciais vermelhas de Fumiko Fei Ling eram como uma tocha para onde todos dirigiam os olhares. Ela amou seu marido desde a primeira noite, quando ele descalçou seus sapatinhos de lantejoulas, que formavam desenhos florais, e beijou, ternamente, seus pés retorcidos e disformes. A gratidão dele era sincera. Mas o êxtase de todos foi ainda mais sublime, quando um ano depois, a querida noiva principiou sua produção de bebês homens. (Um por ano, sem falhar, e fato ainda mais admirável , conseguia manter todos os filhos vivos até à idade adulta, o que fazia seu sogro irradiar um orgulho legítimo). Era de fato, tão abençoada, que teve algum descanso, após a oitava gestação, pois seu amado tomou uma segunda esposa, de apenas dezesseis anos e bastante saudável. E apesar das dores diárias e algumas fraturas provocadas pelo desequilíbrio de seu corpo voluptuoso pesando sobre base tão diminuta, Kumiko morreu centenária e cercada dos filhos, netos, netas e a bisneta, que ainda não estava na idade de ter os pés enfaixados e no colo da mãe , nada entendia do que se passava. Por muitas e muitas gerações, Kumiko teve sua memória preservada no santuário familiar, seu retrato rodeado de frutas e flores da estação, e incenso de seu aroma preferido, o lótus azul.

 

Fotografia de Daniela Pace Devisate

Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo, capital, em 20 de julho de 1971. Vive atualmente em Iguape. é professora de arte, poeta e artista visual. Teve poemas publicados em diversas revistas literárias digitais, como Germina, Mallarmargens, Literatura&Fechadura, entre outras. Em 2018, participou da coletânea da antologia Voos Literários, pela editora Essencial. No mesmo ano, participou de feiras de publicação independente, onde vendia seus livros artesanais de poesia, editados por sua editora cartonera, a Verso Livre. Em 2019, lançou Haikai Tupy, edição independente com tiragem minúscula. Em 2020, participou da plaquete As luas e suas variações, organizador Cláudio Daniel; participou da antologia Simpósio dxs poetxs bêbadxs; publicou um poema na revista portuguesa T¨lön, editada por Luiza Nilo Nunes e nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro individual, Tantos Quartos lunares, pela editora Urutau. Em 2021, saiu no livro As mulheres poetas na literatura brasileira, editora Arribaçã. Lançou um livro pela editora Kotter, Véus de Alethea.

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