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O autocultivo no pensamento taoísta | Chiu Yi Chih

Em certos momentos da meditação em que eu perdia a noção de tempo, comecei a aceitar que as coisas naturalmente são geradas sem serem apossadas e a compreender que as coisas se transformam numa dinâmica que escapa de nosso controle. É nessa compreensão que, segundo Laozi, retornamos à potência vital do recém-nascido cuja manifestação fundamental é o estado de Naturalidade. Não estou dizendo que tenhamos de ser como “crianças” numa espécie de retorno ao estado de infância, ou de renúncia ao mundo dos conflitos da idade adulta. Trata-se do movimento de “renascimento” onde podemos conhecer a claridade na obscuridade, reconciliando as dualidades opostas e complementares. Nesse caso, somos convocados à prática da integração das polaridades como o masculino e o feminino, polaridades que são princípios de manifestação do Dao Indiferenciado. Para os antigos chineses, existem os princípios Yin e Yang, ou seja, os princípios arquetípicos do Criativo luminoso, expansivo, impulsivo e agressivo representado pela espada e do Receptivo escuro, retraído, dócil e suave representado pelo ventre/caverna. Então, a regeneração consiste justamente em conciliarmos esses princípios dentro de nosso ser no sentido de unificá-los com vista à transmutação interior. Mas tal unificação, segundo Zhuangzi, só ocorre na medida em que nos harmonizamos com a Unidade do Dao.

 

Um Mestre disse: “O Dao é tão silencioso e límpido como uma profundeza abissal. Os metais e as pedras não ressoariam se não fossem por causa do influxo do Dao. Assim, os metais e as pedras têm o poder de ressoar, mas não ressoariam se não fossem tocados. Quem seria capaz de delimitar as miríades de fenômenos?! Uma pessoa de virtude soberana pode passar despercebida por causa da simplicidade de sua conduta e se envergonharia caso ficasse ocupada com os afazeres. Ela se enraíza no princípio originário e seu conhecimento se alicerça no Espírito. Sua virtude se estende como uma vasta campina e seu coração se abre a todas as coisas. Portanto, tudo que contrariasse o Dao não teria vida e também a vida que não possuísse a Virtude não se iluminaria. Conservar o corpo e buscar o sentido da vida, enraizando-se na Grandiosa Virtude e compreendendo o Dao, isso não seria como ser um rei da Virtude? Ó vastidão! Assim, quando subitamente a pessoa é impelida por um movimento, todos os seres a acompanham. É considerada como a pessoa de Virtude Soberana. Ao contemplar profundamente o Dao nas trevas, ela escuta o inaudível. No meio da obscuridade, ela vê a luz. No meio do silêncio, ela ouve a Harmonia. Portanto, o mistério cheio de mistérios é capaz de gerar todos os seres, assim como o divino repleto de todo espírito pode gerar a Essência. Assim, o Dao está em comunhão com todos os seres, sendo que somente seu Vazio é capaz de suprir as necessidades de cada ser. O Dao constantemente move e conduz todos os seres à sua morada, tanto o grande como o pequeno, tanto o longo como o curto, tanto o longínquo como o próximo.1

 

Do ponto de vista da totalidade, não há essencialmente diferenças entre os opostos como longo/curto e grande/pequeno. Não somente não existe essa separação como ainda as coisas mais heterogêneas se complementam. O que ocorre é uma experiência de comunhão com a Unidade, um processo de integração entre corpo e mente (dimensão interna) e entre nós e o mundo (dimensão externa). É nesse sentido que segundo o mestre He Shang Gong, “quem governa o próprio corpo modera suas emoções e desejos, sem contudo ferir o espírito (神-shén)”. Quem governa-se a si mesmo, cultiva a harmonia entre corpo e espírito e preserva o Sopro Vital. Assemelha-se a um pássaro intrépido que, dilatando as suas asas sedentas, alça o voo e viaja até os confins da terra sem deixar de retornar ao seu ninho acolhedor…É como se pudéssemos ouvir a harmonia mais longínqua e vislumbrar a luz nas trevas mais profundas sem deixar de retornarmos ao Vazio do Vale.

 

O Espírito do Vale nunca morre.

Chama-se Fêmea Misteriosa.

 

A porta da Fêmea Misteriosa

é a raiz do Céu e da Terra.

 

Incessante existência.

Inesgotável eficácia.2

 

Qual é o sentido do Espírito do Vale? Do ponto de vista simbólico, o Espírito do Vale é o Vazio de potência vital que permeia o espaço situado entre as montanhas. Sendo vazio e sem-forma, esse Espírito concede “espaço” para que todas as criaturas possam crescer e se desenvolver. É o próprio Dao que dadivosamente concede a vida no sentido de propiciar o crescimento e o desenvolvimento de todos os seres. Sendo esse vazio ilimitado, é como uma nascente de águas infindáveis: a essência da vida que nunca morre. Laozi evoca-o como a Fêmea de Eficácia Misteriosa, a Porta-Raiz do Céu e da Terra. É nesse momento que vislumbramos os brevíssimos lampejos de Vida Imortal. O Princípio Imortal gera e transmuta os seres sem ser jamais modificado. É por isso que na sua imortalidade suprema essa quintessência manifesta a plenitude da vida. No estado do Vazio do Vale somos levados a contemplar a potência epifânica do Dao, essa força latente e poderosa, energia de todas as energias, fulgor que transcende as nomeações, os rótulos, os signos e as limitações de nossa mente mundana.  

 

Liezi no seu livro Vazio Perfeito invoca essa imagem transcendente do Espírito do Vale já utilizada pelo Laozi para simbolizar a imutabilidade, pois o que é imutável só poderá ser espiritual, quintessencial, incorpóreo e informe. Ah! Se pudéssemos resguardar nossas energias nesse santuário do vale, onde o Espírito (神-shén) é Informe ou SemForma (无形-wúxíng)! Todos existimos e subsistimos graças a esse Espírito, já que a existência de cada ser só será possível se houver esse espírito-vazio-plenitude-de-potência. Esse estado de Vazio é um estado alterado de consciência. Quando acontece esse fenômeno, passamos a “ver uma forma pequeníssima” assim como a “ouvir um som extremamente sutil”, como nos relata Gang Cangzi, um dos personagens do Vazio Perfeito3. É por essa razão que nesse estado de Vazio, nossa mente deixa de existir, nosso corpo se suspende numa espécie de limbo indefinível, nossos ossos se tornam flácidos, nossos músculos se derretem, nossos olhos ouvem, nossos ouvidos enxergam, todas as nossas reações ao mundo externo se transmutam. Não possuímos mais o nosso próprio eu! Dissolvem-se os limites entre o interior e o exterior. A lua e o sol se fundem. Uma floresta de ecos, uma avalanche de sons metálicos assomam no horizonte. Ao invés de uma carência ou um sentido de negatividade, emergem os fluxos de uma eficácia inesgotável (用之不勤-yòngzhībùqín)4. Nesse aspecto, é importante reconhecer essa dimensão do Espírito, essa matriz energética infinita que procria todas as criaturas, nutrindo e alimentando todas as manifestações do universo. 

 

Na medida em que nos absorvemos na contemplação do Espírito do Vale, nossos seres repousam no estado de simplicidade originária em que não há mais diferenciações entre claridade e obscuridade, entre masculino e feminino, entre corpo e espírito. Nesse processo de unificação, se pudermos harmonizar (assim como o sábio) todas as faculdades e sentidos sem suscitarmos discórdias e estados dispersivos, e se a nossa mente e as nossas ações puderem se coordenar entre si na sinfonia da Unidade Indiferenciada (一體無别-yītǐwúbié), estaremos cultivando o estado de Não-Mente e de Não-Ação. É por isso que o sábio manifesta a eficácia da sabedoria da Não-Ação. Mergulha no estado do Vazio do Vale. No profundo silêncio do seu ser, pratica a Constante Virtude (常德-chángdé) do desapego e da humildade. Despoja-se das escórias do excesso e medita naquela eficácia do Dao Constante (常道-chángdào).

 

Conhecer o masculino 

e preservar o feminino:

eis o que é tornar-se o vale do mundo. 

 

Tornar-se o vale do mundo 

sem se afastar da Constante Virtude:

eis o que é retornar ao estado de recém-nascido.

 

Conhecer a claridade 

e preservar a obscuridade:

eis o que é tornar-se o modelo do mundo.

 

Tornar-se o modelo do mundo, 

impecável, com a Constante Virtude: 

eis o que é retornar ao Sublime Vazio.

 

Conhecer a glória 

e preservar a humildade:

eis o que é tornar-se o vale do mundo.

 

Tornar-se o vale do mundo, 

autossuficiente, com a Constante Virtude:

eis o que é retornar ao estado de simplicidade.

 

Portanto, a simplicidade é um instrumento 

que o Sábio utiliza para se tornar regente,

pois assim não haverá discórdias na sua grandiosa regência.5

 

O centro mais recôndito desse estado de Constante Virtude é o estado originário de nossa condição autêntica. Laozi nos fala do estado de simplicidade que não é um mero estado de brutalidade, de grosseria ou de “primitivismo”, mas sim um estado de esplendor luminoso que aparentemente parece inócuo. A palavra chinesa “simplicidade”(朴-) empregada por Laozi significa aquela simplicidade rústica da madeira bruta que ainda não foi trabalhada, polida e esculpida pelas mãos humanas. No lado esquerdo do ideograma chinês, vemos o radical “madeira” (木-mù) que justamente compõe o significado da palavra. A imagem da “madeira bruta” subjacente à ideia de simplicidade aparece na forma pictórica desse ideograma, e de certo modo, revela a sabedoria do sábio que vive de modo simples, natural e autêntico na sua conduta ético-espiritual. Essa metáfora torna visível a potência da simplicidade na medida mesma em que ao seu significado se associa o sentido simbólico da pureza originária, o sentido daquele estado de recém-nascido que ainda não sofreu as interferências da artificialização humana. 

 

O sábio na sua simplicidade é como um recém-nascido que age sem sagacidade, sem desejo falso de manipulação. Ao cultivar a Constante Virtude da Não-Ação, ele manifesta a sabedoria da Naturalidade (自然之智-zìránzhīzhì) e reconcilia todas as oposições dualísticas. Ao se tornar o vale do mundo, conquista a grandiosa regência da harmonia. Frequentemente as aflições que padecemos são produtos das maquinações engenhosas de nossa mente artificiosa. Disputas, conflitos e intrigas são provocadas pela sagacidade. São desarmonias que dividem e perturbam a regência interna de nós mesmos. Por exemplo, se observarmos uma pessoa sagaz cheia de astúcia e intenção manipuladora, perceberemos que ela age na artificialidade. Sob a máscara da falsidade, só provoca distúrbios. Consciente dessas ilusões, o sábio escolhe viver na simplicidade. Enraíza-se no centro do vazio do vale, sem cair na indulgência dos excessivos e falsos adereços.

 

Na nossa cultura, fomos educados para que sejamos sempre os “vencedores”. Em geral, detestamos permanecer abaixo como o vale, como o feminino ou a água que habita os lugares mais imundos. Preferimos estar “acima’, agindo de modo orgulhoso e seguindo os nossos juízos parciais. Entretanto, se quisermos viver na simplicidade, precisamos nos libertar das concepções equivocadas de apego aos extremos, já que são excessos gerados pelo apego mental. Atualmente se observa um certo endeusamento tecnicista que privilegia o pensamento estratégico, calculista e pragmático. O que presenciamos é a exclusão da capacidade simbólica da imaginação e o predomínio de uma espécie de racionalidade técnico-instrumental. Nesse sentido, na medida em que se proliferam cada vez mais as maquinações, os artifícios, os dispositivos engenhosos de uma técnica fetichizada, deixamos de exercer a liberdade do pensamento humano no que se refere às escolhas pessoais e autênticas. Somos seres humanos com potencialidades valiosas. Uma máquina jamais substituirá a sensibilidade humana. Se, no processo de artificialização, negligenciarmos as potencialidades da dimensão humana e apenas acreditarmos no poder das máquinas, fatalmente cairemos nas malhas reducionistas de um artificialismo massacrante. Entretanto, se agirmos de acordo com a naturalidade, estaremos mais capazes de conviver com os outros seres de nosso planeta de maneira equilibrada. 

 

O autocultivo na simplicidade é cada vez mais necessário nesse momento da pandemia junto com a consciência de que pertencemos à coletividade humana. É por isso que a atitude mais adequada seria cultivarmos o cuidado de si sem perder de vista a importância da presença das outras alteridades. Nessa relação de harmonia com os outros, é imprescindível que cultivemos também um equilíbrio interno tanto no corpo como na mente diante dos estímulos excessivos das exterioridades mundanas que poderiam desgastar as nossas energias mentais e físicas. Portanto, só agindo com simplicidade e enraizados no centro do vale, nos tornaremos os mestres do cultivo da Virtude Originária, os mestres daquela regência interior onde as faculdades da mente e os sentidos do nosso corpo são reconduzidos à Unidade da Suprema Harmonia.

 

Notas

 

1 Veja Fu Pei Rong (傅佩荣). Zhuangzijiedu 莊子解讀 (Zhuangzi com tradução, comentários e notas). Xinbei: Shijiegongmingcongshu, 2017, p.175-176.

 

2 Laozi, Dao De Jing, tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Editora Mantra, 2017, cap.6.

 

3 Liezi, Vazio Perfeito, tradução de Chiu Yi Chih. Editora Mantra, 2020, p.113.

 

4 Laozi, cap.6.

 

5 Laozi, cap.28.

Chiu Yi Chih (邱奕智) é chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, professor de filosofia chinesa clássica e de mandarim (leitura instrumental) nos cursos online de Taoísmo. Filósofo, poeta e tradutor de obras clássicas como “Dao De Jing” de Laozi , “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun Tsu, todos publicados pela Editora Mantra. Praticante de Tai Chi e meditação. Mestre em Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em Letras (Grego Clássico-Português/USP). É autor de livros de poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011), “Metacorporeidade” (Córrego-2016), de e-books “Meditações e comentários sobre Dao De Jing”, “Meditações com I Ching”, “Ensinamentos de Bodhidharma”, “Caminho taoísta”, “Osso Vazio” e “Mantras taoístas”. Visite seu site www.omandarimtaoismo.com

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