Cultura

Necrosistema | Adriano B. Espíndola Santos

Há dias venho pensando nisso. Lucélia me recrimina por eu não conseguir dormir, e diz que a causa é o cigarro – quando creio que o cigarro é uma mínima consequência da insônia. Claro, não quero e não posso falar tudo à minha querida, amada. Desejo que ela tenha um sono tranquilo, enquanto vou virando bicho. A única ideia vaga que ela tem é que o meu trabalho está complicado, por problemas nas contas da empresa. Ela, ingênua, diz que preciso contratar um coach de alta performance, mas respondo que não é o caso; que isso levaria uma boa parte dos recursos, que já são escassos. As questões são outras. Ela afirma que sou teimoso e “cabeça-dura”; melhor que pense assim. Jamais ela compreenderia do que fui capaz para carregar essa “montanha” até aqui. Quando me demiti do banco, com a “bolada” que recebi e com a mente borbulhando por novas oportunidades, fui influenciado por um crápula, que se dizia meu amigo, para abrir uma empresa de locação de carros. Esse, o Jeferson Matos, nos primeiros anos – e olhe que já são quinze anos no ramo –, fez o favor de cobrir as despesas com corruptos, para a “manutenção de nossa paz”, não deixando uma mísera parcela de lucro – isso digo em relação a mim; ele estufava os bolsos e ria, decerto, do meu flagelo, às escondidas. Nunca fomos fiscalizados e, por isso, ganhando corpo, começamos a trabalhar com funilaria e afins nos fundos da loja. “Renda extra, chefia! Não podemos abrir mão!”, falou o auspicioso sócio, com o seu linguajar rasteiro. Quando dei conta, no terceiro ano, o rombo era imenso e, por coincidência, Jerferson – aquele – tinha pedido para sair da sociedade; porque queria se aventurar numa área de faturamento certo, posto de gasolina. A notícia que tenho de meu braço direito, o Valber, é que Jeferson está prestes a ser preso, pelas mais diversas fraudes – a justiça de Deus pode tardar, mas não falha, essa é a minha crença. Pois bem, voltando à minha empresa: na remodelação, tive de me desfazer de uma frota de dez carros – veja, para uma empresa que possuía vinte e dois veículos. Paguei parte das contas, das dívidas com os bancos – ou seja, as que eu sabia; e me tremia só de supor que houvesse mais –, e assumi, com o meu nome, outros empréstimos, em duas instituições financeiras diferentes. Eu não percebia o acerto de Jeferson com o sabichão Borges – imagino que esse seja o seu codinome; não colocaria a cabeça à prova. Borges mandava a fatura de “seus serviços”: omissão das contas, através de seus emissários, três, que passavam rigorosamente nos dias cinco, dez e quinze do mês. Os ditos, que mais pareciam agiotas perigosos, lembravam que o não pagamento poderia acarretar danos para a empresa e para a minha família. Fui obrigado a marcar uma reunião com o chefão, para falar de minhas condições; que estava a ponto de fechar a empresa, se não houvesse fôlego. Borges apareceu em trajes simples, descaracterizado, sem nenhum símbolo do Estado. Sentou-se na poltrona mais confortável do meu escritório, pediu que puséssemos os celulares na mesa; alertou para o uso de câmeras e afins, que deveriam ser desligados, e só assim começou a destrinchar as contas da morte. Quase morri na cadeira. Fiquei colado ao chão, sem reação. Para continuar, teria de despender uma soma que seria um terço do faturamento da empresa, por mês. E, para ele, só havia um jeito: que eu aumentasse os meus lucros com a venda casada de “substâncias proibidas”. Com a corda no pescoço, sem querer abrir mão dos meus privilégios de empresário “bem-sucedido”, pequei: faria vista grossa para o que fizesse, e ele seria responsável por um quiosque de fachada, para conserto de chaves. Fechamos o maldito trato informal. O movimento era grande. Valber desconfiava do entra e sai: “Mas, chefe, são quinze pessoas por dia passando por aqui… Isso não cheira bem. É melhor o senhor ver direitinho. A peãozada já está desconfiando”. Respondi, trêmulo: “Valber, isso é uma chuva… se não fosse assim, teria de arrebentar as contas da empresa com maracutaia”. Bem, maracutaia era o que havia, sem dúvida; todos sabiam. Tive de falar com o Borges para maneirar na dose; que alternasse os dias das entregas; que diminuísse um pouco o fluxo. E ele me disse, seco e nervoso: “É isso ou nada, meu camarada. Está no inferno? Abrace o capeta”. Ele era o próprio demo, sem tirar nem pôr. A bomba ia estourar. Valber chegou, no mês passado, falando que já se inteirara de tudo e que a polícia estava investigando o local. “Meu Deus, o que fazer?”, perguntei. Valber estava desolado. Eu tinha pena de mim, de minha família, mas muito mais da dele, que era formada por uma penca de meninos e uma esposa doente. Antes que desse ruim para nós, planejamos um encontro fortuito com o Borges. Seguimos as suas pistas por dias. Valber deu a ideia certeira, de um crime perfeito: colocar um pequeno explosivo caseiro na lataria do carro, para ser acionado à distância. Borges viajava muito a negócios. Numa dessas, fez uma rota suspeita, para terras longínquas, e foi a hora de contratar o Fernando Cobra Cega, um frio assassino, pistoleiro, para aplicar o fim. Na volta do Triângulo Torto, um lugarejo na divisa com o Piauí, determinamos que disparasse a bomba; senti-me como Kim Jong-un num desses seus testes medonhos. O carro virou farinha. Nós comemoramos. Não deram pelo desaparecimento de Borges. Nada nos noticiários. Era um ser fantástico, uma alucinação? A verdade é que ainda estamos maus das pernas. Coloquei o Valber como sócio e cúmplice. Estamos no mesmo barco, afinal. O quiosque está dominado. O que nos preocupa é porventura uma falha no tratamento do crime. Deixamos vestígios? Já, já outro meliante baterá à porta do estabelecimento pedindo propina? Não. Mil vezes não.

 

Fotografia de Adriano B. Espíndola Santos

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. 

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