Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, é professor universitário (UNISUL), músico, poeta e chef da própria cozinha. Hoje, simbolicamente hoje, acordou com uma casca de queijo entre os dedos do pé esquerdo. Não sabe ao certo, afinal mora sozinho e não possui animaizinhos de estimação, como a casca foi parar entre o indicador e o anular. Como acredita nas experiências mundanas, nas sobrenaturais, psicanalíticas e outras favas, segue observando e fazendo anotações que alimentam a sua curiosidade ficcional em descobrir o parentesco existente entre o fungo do chulé e do queijo gorgonzola. Em breve, nos capítulos que desdobram os interstícios mundanos, será possível colher maiores informações sobre o acontecido e as demais alienações e seus contornos culinários. O dia, atropelado pela necessidade obtusa de se manter vivo, promete ser alvoroçado, oleoso e cheiroso, ao menos até à hora em que a água quente do chuveiro tocar o corpo e propor uma trégua à simbologia das anotações. Demétrio reside em Florianópolis-SC.
Na madrugada que passou, Demétrio Panarotto — que nasceu em Chapecó-SC e reside em Florianópolis-SC, é professor de roteiro na UNISUL, músico, poeta e outras tantas coisas que ele inventa e acredita — montou guarda em frente à geladeira na cozinha de seu apartamento. Panarotto está desconfiado, mesmo morando sozinho, que alguém anda a comer as suas bergamotas. O desfalque nos últimos dias daria, acredita ele e sem impacientar o exagero, para encher umas duas sacolas plásticas, dessas de mercado. Em um jogo de sentidos em que ainda não consegue explicar, como se estivesse ao estilo Hitchcock se colocando na cena do próprio filme, Demétrio, pela manhã, mesmo com o esforço em manter um dos olhos abertos enquanto o outro descansava, percebeu a falta de quatro bergamotas. Chegou, na saliência das dúvidas, contá-las mais que uma vez para ter certeza de que não havia se enganado. Anotou, especulando em tom detetivesco, tudo em um caderninho e aguarda o desfecho que pode vir na próxima ou na outra ou na outra ou… canção.
Demétrio Panarotto, residente do bairro Córrego Grande, em Florinaópolis-SC, foi visto por ele mesmo (através do espelho) na sacada do prédio em que mora, no sétimo andar de um condomínio familiar, no último sábado, por volta das 4h da madrugada, somente de cueca vermelho tesão, simulando tocar guitarra em uma tábua de churrasco, ou algo no mesmo formato, assim por dizer, platônico. Não estava alcoolizado e entoava, desafinadamente, versos que deixariam de cabelos em pé toda a segunda fase do romantismo Brasileiro e, por extensão, do Português. Álvares de Azevedo, mesmo que Demétrio tentasse explicar que a noite na taberna não era possível durante a quarentena, parecia ser o mais exaltado, a ponto de chamá-lo, nas redes sociais, de traidor do movimento. Panarotto — natural de Chapecó-SC, músico, poeta, professor universitário e que caminha todos os dias para não correr o risco de ter que cortar o queijo das refeições —, mesmo sem se considerar um romântico, ficou feliz com a movimentação e os agrados.
Há manhãs de segundas-feiras que Demétrio adoraria apagar de sua memória o fim de semana que ficou para trás. Numa destas, aos flancos do mês de abril, o velho mancebo de cabelos grisalhos e de barba à Rabelais, depois de passar alguns meses, por conta do dinheiro medido, apenas namorando uma fita dental no mercado (dessas de marca boa, que são assim tipo sete reais mais caras que as demais), estava, com toda a desenvoltura de quem havia acabado de levantar e estonteantemente feliz por tê-la comprado, tentando tira-la da embalagem. Os dedos, as mãos, o corpo, os olhos, pareciam imersos em uma falta de elegância e a fita, depois de se desprender do pacotinho… ploft, caiu dentro do vaso sanitário (o corpo submergiu junto). Nem em momentos de tragos homéricos Demétrio havia passado tanto tempo olhando as insanidades do bacio (un bacio di latte). Sei que para algumas pessoas esse pode parecer um trauma menor, para Demétrio Panarotto, natural de Chapecó-SC, morador de Florianópolis-SC, músico, poeta, professor universitário, e avesso a testes psicotécnicos, não.
Se Demétrio Panarotto precisasse citar uma tarde de primavera em que a vida lhe deu metáforas para dançar, nem dúvida que a tarde citada seria a de 09 de outubro, de 2017, em que um beija-flor invadiu o lugar em que vive, no sétimo andar, num apartamento no Córrego Grande. Os beija-flores, e deve ser por conta da quantidade de ervas aromáticas plantadas na sacada, visitam-no vez em sempre. Naquela tarde, intermitente, um deles cruzou a porta da sala, passou pelo corredor e foi até o local em que o desgadeiado Panarotto, ainda com as unhas por cortar, preparava aula e escutava em seu computador leituras contemporâneas de poetas provençais. O som do bater de asas do beija-flor e os versos de Arnaut se encontraram na curva imagética do escritório. E isso foi tudo. Os silêncios se encolheram depois e Demétrio, poeta músico e professor de roteiro, guiou o passarinho até à saída onde os dois se despediram entre sorrisos abraços e um volte quando quiser.
Demétrio prosa Panarotto verso luto corpo náuseas palavras e mais palavras soco vontade de gritar nasceu brisa anunciou dia inóspito gritos gritos ruídos de tinta sendo jogada contra a parede sua chegada no dia 05 do mês de dezembro sagitário mas chegou somente no dia 06 de um longínquo 1969 virgem ascendente e lua escorpião em plena luz pausa encantamento e segundo a sua mãe foi a terceira cesárea realizada na história do já propositalmente falido pelos moribundos da cidade hospital Santo Antônio nos centros e nos confins da cidade de Chapecó SC e hoje passado um punhado de anos de vida surto escleroses e adjacências ainda se interessa por coisas várias variações múltiplas que remetem à sua infância juventude surtada aos pingos de névoas e brisas matutinas geadas em uma cidade de outrora que se transformou o suficiente a ponto de ser absurdamente outra coisa que o próprio Demétrio nem sempre a reconhece quando a visita em noites de lua cheia mesmo que todas essas impressões estejam refletidas em imagens nos escritos que o por hora escritor envia para as editoras sem muito sucesso.
Não divulguem, por favor, mas Demétrio Panarotto, músico, poeta e tomador de café, corre o risco, diante da situação atual do país, de perder o emprego de professor e ter que trabalhar no trânsito fazendo malabares, e não divulguem, pois as profissões (mesmo que nem todos façam esse tipo de associação) se equivalem ao menos, não divulguem, na noção de equilíbrio. Equilíbrio que Demétrio, natural de Chapecó-SC, julga ter perdido em partes, por favor, não divulguem, assim que passou a usar óculos e torceu o tornozelo. Os óculos, in loco, vieram a reboque depois de Panarotto, morador de Fpolis-SC, por pouco não ter praticado uma operação de vasectomia caseira, não divulguem, é sério, não divulguem, ao tentar cortar os pelos do saco. A noção de distância já não era a mesma. Os olhos exaustos viraram reféns sanguinários do espelho corporal. A pele, o pelo e a lâmina da tesoura assoviaram a tarde em um ritmo macabro. Os uivos foram ouvidos, não divulguem, pelos moradores que se encontravam em casa nos quarteirões próximos ao local em que Demétrio mora, mesmo que ninguém, por isso não divulguem, até hoje saiba o motivo daquela gritaria que durou parte da tarde e fez parzinho com um cortador de grama, não divulguem, é sério, não divulguem, enferrujado. Panarotto, fiquem tranquilos e não divulguem, já testou o instrumento algumas vezes e segue funcionando na vida meia boca que nem antes.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, é professor universitário ou era, músico, poeta e adora convidar as palavras para dançar a fim de, desajeitadamente, brincar com os corpos poéticos flutuando nos salões de baile dos textos e das imagens. Na dança mais recente, como de costume acontece e sempre ocorreu, as palavras pisotearam seus pés acredita-se que isso tenha ocorrido pois Panarotto, nos descuidos impostos por uma sociedade mediocrizada, incorreu no desagrave de usá-las de uma maneira fechada, como se das palavras se pudessem extrair um único significado. Não é exagero dizer que deve ter sido xingado em várias línguas tons e expressões e que, como retorno, siga com a orelha avermelhada diante de tamanhos impropérios. Vale dizer ainda que essa situação, e isso nem sempre cabe como argumento, interessam pouco para a vida, e um tanto medido mais para os vários versos que tem o costume de escrever e que se sente bem fazendo isso como modo de não ser atropelado pelos significados da morte antes que ela realmente aconteça. Reside em Florianópolis-SC.
Demétrio Panarotto (1969 – ) nasceu em Chapecó SC. É um músico, compositor, pesquisador, professor e literato brasileiro. Paralelamente a uma carreira musical com a Banda Repolho e projetos alternativos, louvados pela sua originalidade e irreverência, desenvolve atividades como acadêmico, palestrante e escritor. Publicou vários livros de poesia e prosa que lhe valeram o reconhecimento como um dos nomes de destaque da nova literatura do estado de Santa Catarina.