Cultura

O visitante | Carmen Moreno

Era seu aniversário. Estendeu a toalha sobre a mesa, cuidando que o buraco da ponta pendesse para o lado da parede. A toalha rendada fora presente da tia, que a fizera à mão. Renda do Nordeste. Presente de um noivado rompido e enterrado havia dez anos, em Jequié. Digo enterrado, porque a ritualística do fim realmente ocorreu, no quintal da casa onde morava Rosaluz. A moça reuniu uns retratos do caboclo, umas camisas esquecidas na casa, a aliança e um dente do traidor, que exibia em seu colo, junto ao Nosso Senhor do cordão.

 

Augusto foi sepultado no dia seguinte ao ser, finalmente, flagrado num de seus habituais flertes pela cidade. Rosaluz buscou, no extenso quintal da casa, um espaço ermo, pois enterrá-lo próximo a tantas árvores frutíferas seria macular a vida – segundo os dizeres de seu coração aviltado.

Furtou-se cedo ao sono e, junto com os galos, cantou um canto mudo e sem choro. Fincando a pá sobre a terra, cavou um buraco de exagero profundo, se considerarmos a proporção de seu parco defunto. Cobriu os poucos objetos do noivo com o monte de terra acumulado, abandonou a pá sobre a cova e deu as costas à Bahia.

 

Na verdade, uma parte significativa dos sonhos da moça jamais seria agraciada com aquele casamento. Afinal, Augusto não tinha olhos verdes, o que lhe causava considerável desapontamento.

 

Que o leitor não se apresse em aprisionar meu personagem com adjetivos como caprichosa ou louca: seu desejo de namorar um homem de olhos verdes deve ter o encantamento devastador de um grande balão que, aceso no céu, é só beleza – quedado sobre as telhas lambe em labaredas a casa que elegeu. Porque assim era a vontade de Rosaluz de ter um homem de olhos verdes (de ingênua e destruidora beleza). A ingenuidade que a fez anunciar-se, antes de conhecer Augusto, em um jornal de sua terra: “Moça prendada, alegre e honrada, deseja conhecer, para compromisso, rapaz carinhoso. Mas precisa ter olho verde”.

 

– Não, você tem olho castanho-claro, me desculpa. Desculpa mesmo.

 

E assim, sucederam-se dois encontros infrutíferos.

 

– Você não entendeu. O rapaz do anúncio tem que ter olho verde. Mas você é muito educado. Me desculpa, viu?

 

Quase conduzida ao altar por um sexagenário (de olhos verdes) deteve-se apenas diante da ameaça da tia de enfartar.

 

Enfim, aos 20 anos, considerando-se por demais envelhecida para ser desposada, cedeu aos assédios do vizinho Augusto – um caboclo, cuja escuridão dos olhos poderia lembrar noite, jabuticaba… jamais mato ou goiaba verde, como queria enxergá-lo a baiana.

 

Porém, não se iludam. Não construiria uma personagem de coração tão tolo, a ponto de permitir que um par de olhos, embora negros, a fizesse desperdiçar um espírito caloroso como o do moreno. Um romântico a roubar rosas pelas ruas para lhe enfeitar os cabelos crespos. Portanto, mesmo resistente de início, ela acabou cedendo às centelhas do sedutor.

 

Rosa, como Augusto preferia, puxou um pouco mais a toalha para frente, de forma a ocultar por completo o buraco na renda, que ainda sobressaía. Aguardava seu único convidado com cuidados de quem se prepara para casa cheia.

 

Banhou-se com um sabonete especial. O aniversário permitia-lhe extravagâncias – perfume de alfazema, vestido novo de alças, sandália Azaleia e batom da Coty. Acrescentando-se os docinhos e o bolo de chocolate, podemos dizer que teve um gasto considerável para seu modesto quinhão de doméstica. Mas todos aqueles apetrechos compunham sobremaneira sua felicidade. Seu convidado bem que poderia merecer essas minúcias de mimos.

 

Rosa compartilhava o conjugado com duas amigas que, juntas, viajaram justo no dia de seu aniversário. Nada que lhe provocasse grandes queixas – acostumara-se a viver só. Mesmo assim, sempre desejou comemorar seu aniversário com a família para a qual trabalhava havia dez anos, num duplex em Copacabana. Os Camacho habituaram-se a presenteá-la com cartões de felicitações, onde pontuavam seus agradecimentos pelos serviços prestados. Ah! Certa vez, o cartão acompanhou-se de uma garrafa de uísque escocês. Ela, que nunca bebera, exibia com orgulho o presente intato, sobre o guarda-roupas que delimitava seu dormitório.

 

Erram os que constroem em seu íntimo uma moça feia, ou de estética comum. Pretendo intervir no imaginário do estimado leitor, até onde me permitirem as fronteiras, conduzindo-o a compor a beleza do rosto de Rosaluz. Obviamente, mesmo que eu pudesse retratá-la de forma singular, para visualizá-la o leitor precisará amparar-se em referências pessoais, em seus registros anteriores de beleza. Contudo, se uma foto da moça pudesse substituir minhas palavras, ficaria patente a total impossibilidade de comparação com algo já visto. Bem, retoquem os excessos de entusiasmo deste escritor, e arrisquem, no baú de suas imagens, um rosto moreno ovalado, uns cabelos de anéis crespos até os ombros, uma boca saliente e rubra. Um nariz de molde. E uns olhos redondos, que misturem cores, como bolas de gude vistas sob a luz.

 

Rosa completava trinta e dois anos. Ganhara o dia de folga e o esperado cartão, afixado na geladeira por um bichinho com ímã. Olhou o relógio sobre a televisão. Às 18horas chegaria seu convidado. Pôs o bolo no centro da mesa, um prato repleto de doces, dois copos e uma garrafa de guaraná, um pouco empedrada de gelo. Distanciou-se, para uma melhor perspectiva do quadro. O despertador, marcado para às 17h50min., tocou. Ela abaixou o pino e correu ao banheiro para ver-se no espelho.

 

Ajeitou os cabelos e ensaiou o sorriso. Os dentes mancharam-se de batom. Rasgou um pedaço de papel higiênico, limpou os dentes, tirou o excesso de tinta dos lábios e testou novamente o sorriso. Estava pronta. Deu um salto até a sala, ao lembrar-se de que precisava redobrar a atenção, pois a campainha não funcionava. Arrastou uma cadeira até um ponto bem próximo à porta e sentou-se, retorcendo, com as duas mãos, a bainha do vestido. Percebeu que o estava amarrotando e trocou de inquietude ao debruçar-se na janela.

 

Correu até o relógio. Seu visitante completava dez minutos de atraso. Voltou à janela, mesmo sabendo que daquele ângulo não poderia vê-lo chegar.

 

Três fortes toques na porta. Seu descompasso interior negou-lhe forças para recebê-lo. O convidado aplicou três batidas ainda mais fortes.

 

Estavam um diante do outro. Antes mesmo de cruzar a porta, ele estendeu os braços e entregou-lhe o buquê de margaridas. Entrou, elogiou a mesa e disse estar especialmente impressionado com sua beleza. Uma música tomou o espaço. O chão, de súbito, era um tapete de margaridas. Descalços, dançaram sobre as flores, rostos colados. Os verdes olhos do moço…

 

– Não tem ninguém em casa?

 

Gritou o visitante, do outro lado da porta, interrompendo o brevíssimo sonho montado por Rosaluz, num vácuo de segundos.

 

Em poucos passos, a moça cumpriu o pequeno caminho. Abriu o trinco, torceu a maçaneta.

 

Penso que, talvez, meus leitores queiram, finalmente, conhecer esse homem tão esperado e sua ligação com Rosa. Prontifico-me, portanto, a reduzir os rodeios:

 

Na véspera de seu aniversário, Rosaluz resolveu entrar na loja. Durante alguns dias, ao passar pelo estabelecimento, na volta do trabalho, fora observada pelo rapaz. Nunca o vira antes. Enfim, um homem de olhos verdes interessava-se por ela. Não era bonito de todo. Mas isso significava pouco. Naquela tarde, ele se encontrava, como sempre, na porta, ombro colado à vitrine. Novamente, a impressão de que o rapaz a estava seguindo com o olhar. Virou a cabeça. Não era impressão. Ele lhe sorria. Não, disso ela não tinha certeza. A distância já havia embaçado por demais o contorno de seu rosto, para que o sorriso pudesse confirmar-se como verdade absoluta. Mas aquele era o quinto dia em que ele se punha de prontidão, na porta da loja, no mesmo horário, para vê-la passar.

 

Rosa andou mais uns passos e, antes de dobrar a quadra, resolveu virar-se novamente. O rapaz ainda olhava em sua direção. Decidiu voltar e entrar no estabelecimento. Passou por ele, tentando discrição. Um velho, atrás do balcão, dispôs-se a atendê-la.

 

– Boa tarde, pode escolher à vontade.

 

Rosa, ainda sem objetivo claro, indagou-lhe:

 

– Vocês entregam em casa?

 

– Entregamos, se for perto daqui.

 

– Quem entrega?

 

– Por enquanto, meu filho.

 

Apontando para o jovem que, entrando na loja, pôs-se ao lado do pai, atrás da base de madeira.

 

– O garoto da entrega estava dando muito trabalho. Enquanto não se arranja outro, ele faz o serviço. Mas só quando é bem perto daqui.

 

O rapaz falou-lhe, pela primeira vez:

 

– É pra entregar agora?

 

Rosa sentiu-se sem saliva, ao vê-lo tão de perto. Seus olhos eram de um verde aberto e nítido. Um verde inquestionável. Visivelmente mais jovem do que ela. Mas isso não lhe parecia importante. Quando ela percebeu, um enredo estava sendo criado:

 

– Você entrega na casa da minha amiga, amanhã, às seis horas da tarde. Em ponto. Ela faz aniversário.

 

– Você já escolheu? Gosta dessas margaridas?

 

Perguntou-lhe o homem, com um sorriso tão claro quanto o verde dos olhos.

 

Rosa olhou à sua volta. Cercada de flores, sentiu-se como se ele, o dono daquele jardim, fosse mesmo presenteá-la com aquelas margaridas.

 

– Gosto, adoro margaridas!

 

O pai pronunciou-se:

 

– O nome e o endereço, por favor.

 

– O nome é … escreve aí … Rosaluz. Rua do Senado, 26, 2º andar. Mas tem que ser em ponto. É porque eu … ela … ela vai cortar o bolo às seis. Ela nasceu às seis em ponto. Eu queria que ela ganhasse as flores nessa hora, entende? Amiga de infância, sabe?

 

– Claro, pode deixar. Eu sou pontual. Pena que não são pra você.

 

Disse-lhe o moço, num meio sorriso, levando-a a supor que entre eles firmava-se uma comunicação tácita. Como nos românticos encontros das novelas que assistia. Sentiu-se um personagem. E foi incomum enfeitar a tarde de flores … entreter-se de ficção.

 

Ao deixar a floricultura, compreendia, aos poucos, o que articulara por impulso. Construiu a cena no caminho de casa: ele chegaria com as flores. Ela lhe ofereceria um pedaço de bolo com guaraná. Estaria linda o bastante para ter coragem de confessar-lhe a emboscada romântica. Talvez ele já soubesse. Claro. Trocaram olhares cúmplices, ele poderia tê-la seguido algum dia. Quem sabe conhecia seu endereço … seu nome?

 

Abriu a porta.

 

– É pra D. Rosaluz. É a senhora?

 

A moça entreabriu a boca, aspirando uma forte dose de ar que lhe dilatou o peito.

 

– Mas não era você! O que você tá fazendo aqui?

 

O rapaz, abraçado às margaridas, tentava decifrar aquele enigma.

 

– Não tô entendendo. O seu Salomão mandou eu entregar esse presente pruma moça que faz aniversário.

 

Inconformada, elevava cada vez mais o tom da voz:

 

– Eu é que não tô entendendo. Era o outro que vinha entregar.

 

– Que outro, moça? A senhora tá nervosa. Calma.

 

Rosa, quase aos berros, torcia a maçaneta crespa, num ritmo que lhe esfolava a mão:

 

– O filho do dono da loja, droga! O de olho verde.

 

– Moça, eu não sei. Comecei a trabalhar hoje de manhã. O dono da padaria me apresentou. Só conheço o seu Salomão. Um coroa. Nem sei se ele tem filho. Ele disse pra eu entregar essas flores, às seis em ponto, pra uma moça chamada Rosaluz, que faz aniversário. Eu até acabei me atrasando um pouco, porque …

 

– Chega! Me dá essa merda e vai embora.

 

Tomou-lhe dos braços o ramalhete, tentando reter o choro. O rapaz continuou parado à porta. Examinou a fatia do apartamento que lhe permitia seu ângulo de visão; examinou também a beleza de Rosa, enquanto ela, num ritmo mais ameno, debruçava as flores sobre a mesa.

 

– Desculpa pelo palavrão. Nem merda eu costumo falar.

 

Após uma breve pausa, continuou:

 

– Você não vai embora? Vai ficar aí me olhando espantado, como se eu fosse um brucutu?

 

O jovem sacudiu a cabeça, sorrindo, e virou-lhe as costas, seguindo lentamente pelo corredor do prédio.

 

Rosaluz olhou as margaridas, a mesa enfeitada, o chão encerado, e correu até à porta, a tempo de ainda vê-lo próximo à escada:

 

– Ei! Ei!

 

O rapaz virou-se, receptivo.

 

– É meu aniversário. Você não quer um pedaço de bolo?

 

Fotografia de Carmen Moreno

 

CARMEN MORENO  

Poeta e ficcionista carioca, premiada, membro do PEN Clube do Brasil. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNIRIO). PUBLICOU: Diário de Luas (romance); Sutilezas do Grito (contos); O Primeiro Crime (romance policial) e O Estranho (contos). Em poesia: De Cama e Cortes; Loja de Amores Usados; Para Fabricar Asas e Sobre o Amor e Outras Traições. Integra mais de 40 coletâneas, nacionais e internacionais, com poemas publicados em Cuba, Argentina e Portugal: Antologia da Nova Poesia Brasileira, Olga Savary (Org.); Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (contos), Luiz Ruffato (Org.) e Todos os Saramagos, Leida Reis e Myrian Naves (Org.). Recebeu, ente outros, o “Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa”, Rádio França Internacional/Paris.



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