para
Francisco
A vida se vive no corpo; a outra, é
um texto. Serge Dubrovsky
março de 2017
Escrever, o verbo, em sendo infinitivo, é a razão do encontro dos dois e o ensejo do gerúndio, o movimento. Não obstante, esta forma nominal que deu asas à palavra de um ao outro fez-se, logo, voo solo: abruptamente tímido, distando-os.
Com pulsação de pássaro, e singular doçura, certa feita, grassaria o caminho dela para um destino (in)certo. Quando abriu o caderno, recorrendo à escrita cursiva, ele a interpelou, com zelosa reverência ao lettering. (Só um estalo ‒ a paixão, objetiva, ao largo de Letras. O estio. A chuva do verão carioca.)
A troca de e-mails a despertou para algum arranjado entre eles. A própria forma da correspondência chegou a dizê-lo, como também, curiosamente, a identificar o corte temporal.
(In)compreendia o mundo da (cœur)relação, e os diálogos, no bairro do Flamengo, nascentes na brevidade daquela manhã, a solapavam, no curso: a respiração estéril. E, com silêncio, de impalpável esperança, o calendário, acelerado, dobrava a aposta, a ponto de a lacuna tornar-se tão inglória quanto intermitente. Algo como “a falta que ama”, na fórmula de Drummond, a criação a reboque do sentido ‒ linha tênue entre ficção e realidade, a partir da qual o que estaria por vir (com ansiosa interrogação ao metaverso) seria escrutinado, mas sem descrer do afeto ‒ palavra ali ressoada.
Sentia o desconcerto, com rubor e (in)expressividade de quem tinha muito a dizer, mas cujo direito de fazê-lo não chegava. Passaria anos assim. No hiato da presença dele, insurgiram-se emissões de sombreado informe que não foram para ela mais que distração das repetições em série; nada que a suscitasse o interesse. Espiar de través a caixa de entrada (e até o spam) foi há muito, além de cringe, sua subsistência-diária e forjar surpresa para ela mesma, sua impossível lufada de ar. Se acarinhada fosse com alegrias de outra ordem, apenas, soçobrava. A vida toda, aliás, se dava à tristeza tranquila, o que tirava de quaisquer expectativas a sua existência.
Os canteiros de pouco viço e alinho, quando não murchos propriamente, revelavam-se pela abertura maiúscula da janela de seu quarto ‒ situada no andar de cima do pátio ‒, e se resolviam, não raro, com dias de sol e generosa umidade. Qual com persiana baixa, fotografias, livros e xícara de café quente sobre a mesa. O branco-gelo das paredes do apartamento em Copacabana, onde, inclusive, persiste em fazer morada, rivaliza(va), a todo instante e canto, com o pensamento dela. Direcionava-se, com alguma frequência, à memória guardada que tinha: já era perfume.
abril de 2017, 2018, 2019, 2020…
Os passos dos dois se desacertaram. A pena parecia desadivinhada de vez…
O modo como, ordinário, os dias decorriam era a ausência pormenorizada, com dias vagarosos ‒ o limite do que pensar, entrelaçado ao jardim cimentado. Qual um aquário seco. A interdição exasperada das palavras, somada à angústia do mundo no pathos, de até então, não poder dividir o mesmo espaço, intervinham, dando a ler, na caixa de correspondência, a passagem do tempo, com a agenda dos sentidos constantemente por ajustar…
…até que …
12 de agosto de 2021
A escrita deste email parece supor a retomada do diálogo, e esse é um movimento que, confesso, já nasce envolto em conflito, e, também, reativo à procrastinação. Sigo ordenando ideias, memórias, blocos de notas, mas não consigo dirigir-me para o que apesar de existir ainda não vige, não se faz presente. Em anos insalubres como os últimos, me impacta, sobremaneira, o inalcance do tempo passado.
13 de agosto de 2021 a …
(Com o pensamento nele: a escrita a partir do silêncio)
… 6 setembro de 2023
Quando de volta estiver, não deixe de reservar uma tarde para tomarmos um café. Depois de algumas voltas em torno do sol cá estou, de novo, a me flagrar, em prosa aberta…
13 de setembro de 2023
Os muitos vaivéns sucedidos, a espera em cultivo que não cessa a despedida, o tempo íntimo contrário ao do mundo e a tentativa de aplacar a suspensão dos pensamentos, no cerne das leituras de momento, fizeram com que ela, então, decidisse registrar Adam Phillips, psicanaliticamente trazido do amanhã, em um post-it amarelo: Desistir ou abrir mão de algo ou alguém sempre expõe o que supomos querer. Ao que seria balizado com um talvez ou um depois.
Ontem, o(s) encontro(s), três ou dois ‒ Hable con ella. Ocorreram perto de casa ‒ a dela e, coincidentemente, no pretérito imperfeito, a dele. Em uma cafeteria com paredes de vidro, refletoras de transparência e de acabamento reticente, testemunhou o palpável das coisas, da palavra, da lembrança. Com os olhos em atenção: ouviu-o; a modulação de cada frame, e suas palavras de circunstância, a tomaram de sobressalto: como pensar anos em minutos ‒ pois se ele percebesse alguma coisa de excedente não mais a levaria à dissolvição do ponto final; o gole d’água foi seu amparo e ganho de atitude. Mexeu nos cabelos, buscando (re)conhecer-se. Também não desejava ter a menor que fosse das conclusões. Era preciso fazer morada ‒ desprendimento voluntário da anterioridade de motivos. Chegou mesmo a pensar se conseguiria, o que a fez tontear em sibilina mudez, o quê e como dizer, a esfinge enredada mutuamente.
Assim, (se) seguiram, ao menos agora a filha o aguardava na escola e na vida.
Letícia Ferro é hesitante crítica literária.
E-mail para contato: let_ras@hotmail.com