Aconteceu-me um poema
Fernando Pessoa
Aconteceu-me um poema é daquelas frases amplamente citadas e que mora algures na tessitura lexical da memória. Ouvida e lida por aí. Como muitas outras. Trata-se de uma expressão cujo autor e agente é conhecido e determinado. É possível encontrá-la num livro (à partida) e ter acesso à fonte. Ainda assim, nunca saberemos exatamente o que Pessoa quis dizer com isso. Há, no entanto, uma ideia interessante na expressão e que diz respeito ao facto de o poema que acontece na minha cabeça, que surge de repente, é anterior à própria linguagem. As palavras é que lhe dão forma. Mas o poema pode ser dito de outra forma qualquer: através da plasticidade de uma imagem, de uma pauta musical, de gestos ou até de uma equação. É provavelmente o quis dizer Álvaro de Campos, mas não tenho a certeza porque não lhe posso perguntar, quando afirmou o Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso.
Pelo contrário, a expressão o que se diz por aí está mais relacionada com agentes indeterminados, com aquele tipo de acontecimentos, situações, expressões que não se conhece o autor ou a proveniência. Mas existem semelhanças com o que foi dito anteriormente. Dizemos ou fazemos, mas não sabemos porque dizemos ou fazemos. Repetimos e nessa repetição mantemos viva a expressão, damos-lhe conteúdo e, frequentemente, metamorfoseamo-la. Neste sentido, a origem de um provérbio, por exemplo, pode ser, tal como o poema, um acontecimento, algo que acontece simplesmente e depois circula nas palavras. Foi certamente produto da intencionalidade de alguém, mas é igualmente, o resultado de uma intencionalidade coletiva fenomenológica. É um rumor da consciência dirigido que passa a ser cantado, recitado, como uma adivinha ou lengalenga, como um boato, que sai sem seriedade, a fabricação de um ruído, um murmúrio geral. Existe, aliás, uma certa musicalidade nos provérbios e essa musicalidade pode explicar o facto de se propagarem tão facilmente e de a eles recorrermos frequentemente. Também a sua universalidade e de transmitirem conhecimentos comuns sobre a vida. Nos provérbios Quem feio ama bonito lhe parece ou Em terra de cego quem tem olho é rei, por exemplo, existem muitas opiniões partilhadas, de pessoas que têm a mesma interpretação, mas que não podem ser explicados de maneira convencional. Não se fala propriamente da natureza do cego ou, por analogia, dos olhos. Fala-se de um efeito.
Existe sempre um eco nas palavras, nas mediações que estabelecemos com o mundo, no que dizemos. Existe sempre um agente indeterminado. Talvez as palavras e o que conseguimos articular sobre o mundo, quer seja em forma de poema, equação, rumor, boato, provérbio, preposição, composição musical não passe do reflexo, o espelho de um texto mais antigo, universal escrito antes do tempo e das palavras serem inventadas, pela mente de um Deus invisível.
É talvez o que Newton, o homem da matemática, quis dizer ao afirmar. Não sei como vou aparecer ao mundo. Mas, para mim próprio, pareço ter sido apenas uma criança a brincar à beira-mar, divertindo-me a encontrar de vez em quando uma pedrinha mais lisa ou uma concha mais bonita que o normal, enquanto o grande oceano da verdade permanece todo por descobrir diante de mim!1
Nota
1 Newton, cit. In Bell, Men of Mathematics, 1986. p. 90.
Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi co-organizadora, entre outros projectos, pelas obras 10 Livros que Mudaram o Mundo (publicado pela Quasi Edições, em 2005), Cesário Verde, um pintor nascido poeta (apresentado no âmbito do Colóquio que assinalou os 150 anos do nascimento do poeta, intitulado “Cesário Verde: visões de artista”, integrado nas respectivas Actas pelo Campo das Letras, em 2007) e Dez Luzes num Século Ilustrado (publicado pela Editorial Caminho, em 2013).
Integra, desde finais de 2016, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. Publicou, em Janeiro de 2021, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Roupão Azul , Guerra e Paz Editores, que foi galardoado com o Prémio Glória de Sant’Anna, na sua 9ª edição, em Maio de 2021. Publicou em 2022 o seu segundo livro de poesia, Enfermaria, também editado pela Guerra e Paz.