Cultura

O que muita gente está a fazer: a vida como uma orquestra… | Ana Paula Jardim

Coro e Orquestra da FCG.

 

O que muita gente está a fazer é, como ponto de partida de qualquer reflexão, uma questão duvidosa e que levanta inúmeras objeções a partir do momento em que procuramos encontrar a definição exata. É possível dizer que se trata de uma ação coletiva que implica vários agentes, uma certa ideia sincronizada de muitas pessoas a pensar a mesma coisa. Num mundo de fluxo permanente de pensamento e ações diversas, muitas pessoas a pensar a mesma coisa, numa combinação feliz e com a mesma finalidade, parece uma premissa implausível e pouco provável. Se existem acontecimentos que resultam de uma coordenação simples de identificar, outros há, porém, em que essa combinação não faz sentido e seria mais correto falar em acaso. Uma espécie de coordenação incoordenada. Muitos acontecimentos históricos, por exemplo, podem ser a expressão de diversas ações individuais, mas a sua complexidade, a mão invisível que as governa, não permite uma identificação clara. Existe apenas um resultado, uma pluralidade de movimentos, de causas, de vontades que desenha um quadro final. É apenas possível fazer uma descrição de um conjunto de ações, sejam coletivas ou individuais, que nunca aparecem em estado puro.

 

Um bom exemplo de um conjunto de ações sincronizadas, que têm uma finalidade comum, mas que operam em frequências diferentes, é a constituição de uma orquestra. Para uma leiga musical como eu, esse exercício torna-se mais interessante quando procuro realizar o esforço de escutar, numa polifonia de sons, a sua particularidade, o que cada instrumento e músico estão a dizer. Ouve-se tudo e não se ouve nada. Fica-se com os sentidos ensurdecidos, confundidos. A magia acontece para um intérprete musical cego quando, sem coordenadas de compassos, cordas, pautas, violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, flauta, oboés, clarinetes, fagotes, trompas, tímpanos, triângulo, xilofone, entre outros, consegue ter uma visão de conjunto, escutar numa escuta incoordenada aquela coordenação transcendental. 

 

Um diálogo individual em cada um procura a paráfrase certa da composição musical que estão a reproduzir. Que resultou de um entendimento prévio, ensaiado, experienciado e vivido, mas que possui sempre uma margem de desconhecido, de improviso. Sem haver a garantia de não ficar perdido na terra de outrem, no lugar e na conversa de um mundo que é fascinante, mas que não pertence a ninguém. E, no entanto, o resultado deste processo pode ser para os músicos e interpretes (executantes e ouvintes) esmagadora. Das experiências artísticas mais intensas que existem e que não se explicam. E ainda há que considerar o maestro como mediador deste conjunto, do tempo certo, das regras do diálogo musical, da leitura da partitura.

 

A teatralidade musical de uma orquestra, os vários atores e personagens é o resultado de um conjunto de ações individuais que conjugadas traduzem o resultado de uma ação coletiva. E neste processo de coreografias, pautas, instrumentos, o intérprete musical procura o som perfeito sem nunca o encontrar, a polifonia exata da visão de alguém… Implica uma escuta e uma ação em construção. Em que é ou não necessário uma batuta ou, ainda, uma voz. Uma combinação de sons e silêncio no tempo ou compasso exato. Onde não cabe toda a complexidade de pensamentos ou ações possíveis, mas apenas aquelas que naquele exato momento experienciamos. Sempre à procura da partitura universal. Na música como na vida…

 

A música p’ ra mim tem seduções de oceano!/ quantas vezes procuro navegar,/ sobre um dorso brumosos, a vela a todo o pano,/ minha pálida estrela a demandar!

O peito saliente, os pulmões distendidos/ como o rijo velame d’um navio,/ intento desvendar reinos escondidos/sob o manto da noite de escuro e frio;

Sinto vibrar em mim todas as comoções/ dum navio que sulca o vasto mar./ chuvas temporais, ciclones, convulsões.

Conseguem a minh ‘alma acalentar./ – Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,/ que desespero horrível me exaspera!1

 

Referência

1 BAUDELAIRE, Charles. A Música. In As flores do mal.

 

Fotografia de Ana Paula Jardim

Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi co-organizadora, entre outros projectos, pelas obras 10 Livros que Mudaram o Mundo (publicado pela Quasi Edições, em 2005), Cesário Verde, um pintor nascido poeta (apresentado no âmbito do Colóquio que assinalou os 150 anos do nascimento do poeta, intitulado “Cesário Verde: visões de artista”, integrado nas respectivas Actas pelo Campo das Letras, em 2007) e Dez Luzes num Século Ilustrado (publicado pela Editorial Caminho, em 2013).

Integra, desde finais de 2016, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. Publicou, em Janeiro de 2021, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Roupão Azul , Guerra e Paz Editores, que foi galardoado com o Prémio Glória de Sant’Anna, na sua 9ª edição, em Maio de 2021. Publicou em 2022 o seu segundo livro de poesia, Enfermaria, também editado pela Guerra e Paz.



Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura