O lado da Ciência
Em compasso afinado com diversas áreas de atraso evolucionário do Brasil, volta, em uma atávica ressonância um debate supostamente superado entre ciência e política, materializado pelas submáximas do tipo “ciência não tem partido”, ou, “ciência não tem lado”.
Este tipo de assertiva traz um denso sofisma em seu corpo. Para aquele bem versado em história da ciência, história da filosofia e história geral, a ciência cartesiana (matriz de pensamento cientificista há 5 séculos) traz no seu íntimo o racionalismo como guia de construção do conhecimento e ainda uma metodologia procedimental e matemática que representa uma luta contínua contra tudo aquilo que vindo do indivíduo e de seus desejos pessoais possa interferir no resultado de um experimento ou de uma estatística sobre dados existentes. Além disso, o tratamento matemático estatístico é uma luta constante para que se identifique, nos achados produzidos ou nos dados apurados sobre qualquer realidade, os elementos do acaso que possam obnubilar a percepção da realidade.
Obviamente, quando falamos em “percepção” estamos partindo do pressuposto que qualquer percepção é obra da consciência do indivíduo, e portanto, sujeita aos viéses deste indivíduo, também pressupostamente sempre existentes. Na perspectiva coletiva, esta percepção pode formar conjuntos distintos sobre os mesmos dados de realidade, e assim, o tratamento estatístico persegue também o objetivo de uniformizar esta percepção de forma que a informação ou o conhecimento apurado seja palatável e “aceitável” pela maioria.
Não sou daqueles que cultiva a verdade científica como único ou absoluto critério de verdade. Mas também não sou daqueles que desacreditam nas verdades produzidas pela ciência. Tenho no meu íntimo a plena noção de que muitos conhecimentos não estão ao alcance do método científico ou de certa visão determinista. Exemplos clássicos desta divisão remontam à grande ruptura imposta pela física quântica, que não obstante alicerçada em princípios antideterminísticos (e às vezes, verdadeiramente fantasmagóricos) foi a mais bem sucedida teoria do século XX, cujos frutos entranham-se em cada aspecto de nossa vida cotidiana, e em breve, será incorporada ao mundo da informática no maior salto tecnológico jamais visto nesta área. Ainda assim, a física quântica jamais fracassou em no critério cartesiano da reprodutibilidade, algo que “democraticamente” dá chances verdadeiramente iguais aos que repetirem os experimentos que deram um certo resultado de obter o mesmo resultado.
Toda a construção científica cartesiana, querendo ou não, traz em seu bojo a desconstrução da ligação entre o poder político, ou ainda, o poder de fato, com os critérios de verdade e a determinação dos campos de conhecimento de uma sociedade. Ainda que o cientificismo possa (e deva) receber com dignidade as cáusticas críticas de Paul Feyerabend (“Adeus à Razão), a adoção de seus critérios pelos sistemas culturais e sociais deu-se de forma quase inabalável desde suas origens. Isto chega ao ponto de que a carreira científica traz ao seu ator as sucessivas titulações acadêmicas que na prática terminam por designar posições de poder sobre a verdade, que no limite, servirão de base para as decisões políticas nos respectivos níveis de estado. Assim, o agente de estado moderno faz um pacto implícito com a ciência, pois caso assim não proceda, estará sob o risco de ser classificado como autoritário, totalitário ou obscurantista.
Pobre do cientista que não expande para todos os campos do seu conhecimento e percepções a essência da ciência cartesiana. O que temos visto é um patético espetáculo de suicídio de reputações perpetrados por pessoas sobre as quais jamais se esperaria isso. Mas, como humanos que são, não são imunes às perversas manifestações dos arquétipos de poder e dominação outrora tão sinônimos de grandeza. E nesta esteira, fazem do seu ego a principal propulsão de suas carreiras que naturalmente os levam às posições de fama e conexão ao poder.
No outro polo, o cientista que no seu amadurecimento consegue incorporar à sua visão de mundo a sabedoria e a humildade que a ciência naturalmente provê, afasta-se cautelosamente de qualquer estrutura totalitária de pensamento, de qualquer sistema de conhecimento simplista, e mais ainda, de qualquer discurso restritivo ao pensamento e à crítica. Ao contrário, engaja-se em um projeto permanente de construção do pensamento crítico (e de sua divulgação) com viés coletivo e não individual ou pessoal. Assim, as visões de mundo providas pela ciência têm uma tendência natural de levar seus praticantes a uma visão mais altruísta, pelo menos muito clara na minha experiência pessoal que confirma a história até onde a conheço.
Quando observo agentes da ciência com suas respectivas titulações aproximarem-se de correntes políticas que reúnem as clássicas características do fascismo, sinto um imenso desgosto pelo fracasso que a academia teve em identificar essas pessoas que não estão prontas para a ciência. Há muito tempo que critico as pós-graduações feitas por gente muito jovem. Acredito mesmo que formação científica exige alguma maturidade, um critério que reconheço difícil de aplicar. E em um círculo vicioso, sabemos o quanto um mestrado e um doutorado são capazes de consumir um jovem estudante e de isolá-lo de diversas vivências de realidade, especialmente a política, transformando assim a carreira acadêmica em uma via de reafirmação de certos valores impregnados nas suas estruturas que abrem o apetite para a sede de poder em sua forma bruta.
No contexto atual brasileiro, temos um fertilíssimo terreno para a análise destes fenômenos sobre os quais procure trazer aqui alguns elementos de reflexão. Que no meu sentimento, deixam claro que se a ciência não tem um “lado” como aquele do ideal partidário, ela fundamenta sim uma visão de mundo que predomina nas sociedades verdadeiramente democráticas ou que assim desejam ser. Pelo menos, no nosso caso particular, uma visão profunda sobre nosso texto constitucional deixa claro que a ciência é um valor em si mesmo fortemente introjetada nos valores do constituinte de 1988, e que no cenário atual, aglutina-se fortemente contra a força de oposição aos seus valores que atua com a técnica da destruição da linguagem, algo que deveria alarmar desesperadamente qualquer pessoa com mínima formação científica, o que claramente não ocorre com alguns, que diligentemente são atraídos ao poder atual.
Assim, se a ciência não veio ao mundo para constituir-se explicitamente como um “lado”, as circunstâncias momentâneas do Brasil a obrigam a assumir um, sob pena do seu próprio fim.
Nelson Nisenbaum, 60 anos, médico, escritor e ativista, especialista em Clínica Médica e Psiquiatria Clínica, trabalhou 25 anos no SUS em medicina de urgência e emergência, foi delegado do CRM em São Bernardo do Campo e Diadema, foi membro do Conselho Municipal de Saúde de SBC. Atualmente atende em Consultório particular nas especialidades de Clínica Médica e Psiquiatria clínica.