O cheiro que vem do raro esplendor
“Neste instante, estremeceu ao captar o cheiro dela. Muito mais a lembrança do cheiro que o próprio cheiro. Um flash. Com força suficiente para fazê-lo enfiar a cara nas roupas de cama em busca de mais. Tudo que conseguiu encontrar, no entanto, foi um aroma longínquo de sabão em pó.”
(Marçal Aquino. Baixo esplendor. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p.220)
Muita gente não gosta de ler livros digitais; afirmam que o cheiro de um livro físico é fundamental. Li o recente romance de Marçal Aquino no kindle (depois ganhei de presente o livro físico) e impressionou-me a proliferação de odores. O escritor paulista Marçal Aquino fez o roteiro do filme “O cheiro do ralo”, dirigido por Heitor Dhalia, e baseado no livro do mesmo título, de Lourenço Mutarelli. Quem conhece a obra de Marçal, é ciente de suas pegadas vigorosas, narrativa forte, fluente, no frenético ritmo cinematográfico. Baixo esplendor não desmente isso e, repito, assaltou-me o apelo sensorial do olfato.
O título de livro me remete aos primeiros versos da canção de Lamartine Babo, “Eu sonhei que tu estavas tão linda/ numa festa de raro esplendor…”. Pois bem, o adjetivo “raro” foi trocado por “baixo”, conotando o baixo mundo ou submundo do crime, ao passo que esse mesmo “raro” sugere o trocadilho com “ralo”, do livro de Mutarelli e filme de Dhalia, que também conota um lugar de sujeira, excrementos, putrefação.
Logo nas primeiras páginas, o leitor é convidado a viajar numa aventura vertiginosa conduzido pelo cheiro: ““Ele entrou em casa, sentou-se no boxe do chuveiro decidido a usar o lança-perfume. Achou que merecia. Deu uma prise. Duas. Embalou. Daí, cheirou até apagar.” (p.22) Se o cheirar apaga o protagonista “Miguel”, codinome de um agente infiltrado numa quadrilha de contrabandistas, outros odores acendem e rescendem nas páginas seguintes: a cachorrinha Bibi – que ingressa como inesquecível personagem canina a fazer companhia à Baleia de Graciliano – traz sua contribuição, nesta passagem: “Livre, Bibi pulou para o interior de um canteiro de flores da praça onde desembocava a rua, atendeu ali, agachada, às necessidades de sua fisiologia, farejou fisiologias alheias.” (p.23) E o que se vê, ao longo da narrativa, é uma sucessão de odores, com alternância de bons e maus cheiros:
“Conheço a peça: bonitão, arrumadinho, perfumado.” (p.29); “Oberdã pegou um molho de chaves sobre a mesa e eles seguiram por um corredor mal iluminado, que fedia a creolina” (p.29); “Seu estado de irritação chegava a exalar um cheiro ruim.” (p.35); “Ele achava que suas mãos iam ter cheiro de sabão barato pelo resto da vida.” (p.45); “[…] o bafo denso dando conta de algo ainda não metabolizado do almoço.” (p.64) “Olsen detestava cheiro de cigarro.”(p.66); “O quarto do velho, ele iria demorar a esquecer, cheirava a uma mistura de suor, urina e carne chamuscada.” (p.76); “[…] não demorou para o ar da cozinha ficar impregnado pelo cheiro da maconha.” (p.135); “[…] e teve tempo de captar no cabelo dela, misturado à fragrância do xampu de frutas, o inconfundível cheiro de marijuana.” (p.88); “Havia algo no ar, além do cheiro moribundo do rio ali perto, que em dias sem vento chegava a arder nas narinas” (p.94); “O balconista afagou uma vez mais o animal e aproximou-o do nariz, antes de colocá-lo no balcão.” (p,98); “Uma marofa densa chegou às suas narinas .” (p.99); “O samba continuava forte no ar, assim como o odor de maconha.” (p.100); “No longo minuto seguinte, a única novidade foi a aparição das moscas, que o descobriram e começaram a importuná-lo, assanhadas pelo cheiro de suor.” (p.100); “O ambiente recendia a suor e sexo.” (p.130); “Ele se acercou tanto que Miguel captou o perfume cítrico de sua loção pós-barba.” (p.149); […] o vapor perfumado dos temperos, insinuante” (p.80); “A mulher mais bacana com quem ele tinha cruzado na vida, e a que cheirava melhor – mesmo de manhã, ao acordarem.” (p.245); “Não tinha culpa se os outros não passavam de animais que fediam a suor e a perfume vagabundo. Como os dois que bebiam a seu lado no balcão.” (p.237); “Aproximou-se com cuidado, venceu o asco ao mau cheiro”(p.229); “E uma cicatriz alarmante nascia na lateral do rosto e avançava para o pescoço. E como fedia.” (p.228) “[…] E tinha o cheiro do rio.” (p.222) “Tinha sumido, mas deixado no ar um rastro pestilento, quase sólido, que ele seguiu sem dificuldades.” (p.222) “Pela porta entreaberta de um banheiro, vinha o cheiro inconfundível de maconha.” (p.166)
Em um trecho protagonizado pelo personagem Ingo, criminoso irmão da amada de Miguel, há a síntese dos cheiros desse baixo esplendor que é o mundo dos bandidos: “Ingo instalou-se ao volante e, antes de dar a partida, fechou os olhos e aspirou o cheiro dos assentos novos em folha – Miguel teve a impressão que ele gemeu de prazer. Era um dos quatro aromas favoritos daquele tipo de gente – os outros três eram o cheiro de dinheiro, de buceta e de pólvora, com a ordem de preferência variando conforme o indivíduo em exame.” (p.49)
A propósito de Ingo – raro nome, xará do “Alemão”, o automobilista brasileiro Ingo Hoffmann, campeão várias vezes na categoria Stock Car – é interessante rastrear as pegadas desse marginal que tanto se afeiçoa a Miguel. Ambos gostam de ler. Ingo, inclusive, é escritor e fez um livro sobre a vida bandida. Miguel assim o considera: “Era um bom livro, cheio daquela vitalidade que a experiência vivida costuma conferir às narrativas. No fundo, não importava o que era real e o que era ficção – ela também existia, é inegável, e em boa quantidade naquelas páginas. Mas não se podia negar que Ingo tinha uma grande aventura humana para comunicar. Isso, afinal, é o que se espera de qualquer livro.” (p.232) Esse comentário, ademais, pode servir para classificar o próprio livro de Marçal Aquino, sobrenome que termina em “quino”, quase anagrama de de “ingo” que, por sua vez, aproxima-se de sílabas do codinome Miguel, irmão de Nádia, a mulher que exala bons odores para o protagonista.
Se os cheiros ruins são associados a “fruta passada” (p.49), “ar engordurado” (p.50), “travessa estreita fedendo a mijo” (p.63), “cheiro químico azedo” (p.83), o cheiro de Nádia inicia um processo que vai do odor desagradável ao agradável e desejável: “Era uma calcinha lavanda, de corte atrevido, com tiras fininhas nas laterais. Ele não resistiu e a levou ao nariz. Encontrou o aroma sutil do corpo da dona e, mais sutil ainda, uma fagulha almiscarada de urina.” (p.85); ” […] sentiu desejo pelo cheiro de urina na carne de Nádia.” (p.73). A urina, aliás, tem um curioso significado na narrativa, pois Nádia, quando está nervosa, sente sempre vontade de urinar e, num momento marcante do enredo, mija-se toda. De certa forma, ela me remete à personagem feminina do romance Angústia, de Graciliano Ramos, cuja mijada excitava o protagonista. Nádia, por esse aspecto, aproxima-se um pouco da cadelinha Bibi, uma vez que urinar faz parte da idiossincrasia canina em seus sinais de afeto ou medo. Bibi também passou por maus momentos e chegou a cheirar mal: “[…] e a cachorra se deixou acariciar, dócil, agitando a cauda e ganindo. Estava magra, com o pelo sujo e cheirando mal.” (p.96) Nádia é associada a bicho, através do cheiro: “O cheiro dela, quando ficava excitada, uma coisa mais de bicho que de gente.” (p.131).
Num relato em que há tantos crimes e sórdidas cenas, Marçal mescla violência e lirismo, pureza e impureza: “Foi um encontro intenso o deles. Eram dois sujos que se amavam com pureza.” (p.131). Assim, na sucessão dos odores que emanam dessa aventura em que o leitor não quer se desapegar do livro, o cheiro de Nádia é o que traz mais frescor e lirismo, e a torna próxima da figura amada da canção de Lamartine Babo: “[…] seu perfume chegou meio segundo antes às narinas dele, um acento de frescor. Ela parecia ter saído do banho. Ou de um sonho.” (p.71); “De nada adiantara o banho: o cheiro de Nádia permanecia em seu corpo e, às vezes, chegava às suas narinas como uma lufada de sonho.” (p.189) O odor de Nádia traz, inclusive, uma sensação de volta à infância: “Depois de algum tempo abraçados, em que ele pôde desfrutar do aroma adocicado de xampu infantil no cabelo dela” (p.166).
A mescla de impureza e pureza, do erotismo cru e lírico podem ser exemplificados numa belíssima passagem em que a metáfora da borboleta pontua poeticamente uma descrição de cunho naturalista, o que nos remete a uma releitura, em outro compasso, da cena da menstruação de Pombinha em “O cortiço”, de Aluísio Azevedo: “Quando Miguel entrou no quarto, Nádia o esperava estendida na cama, molhando de saliva os dedos e manipulando os mamilos, vestida apenas com uma calcinha preta, que afastou para receber ali, na junção das coxas, os beijos dele, que começaram suaves – o roçar da asa de uma borboleta -, depois se intensificaram, se encresparam, se desesperaram; já nem era beijo esse encontro frenético de lábios untados de saliva e muco.” (p.172)
A presença dos odores, enfim, prende-se diretamente à vida; se Nádia é a vitalidade do sexo, como neste trecho: “O corpo dela inteiro exalava sexo, uma coisa que o tirava do sério.” (p.174). Entretanto, de todos os cheiros, é o cheiro de sangue que marca o embate vida x morte: “Havia muito sangue ressecado no chão. O cheiro permanecia vivo – nada cheira como sangue.” (p.96); “Ele sentia o cheiro do próprio sangue, e isso o deixava enjoado.” (p.255). O codinome de Miguel remete ao arcanjo, e, no texto, há relação entre anjo e cheiro: “Um anjo que não cheirava muito bem. Cabelão desgrenhado, cheio de lêndeas e piolhos, dentes amarelados e um par de asas um tanto malcuidadas, como se necessitassem de manutenção. Ainda assim um anjo, que lhe sussurrou a mensagem com um hálito que bem podia ter vindo do inferno: Ainda não acabou.” (p.259)
Cumpre salientar que a matéria literária do autor, ao abordar o baixo mundo do crime, é assinalada por altos momentos de esplendor, que, por vezes, nos lembramos da força expressiva de Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e João Antônio. Deste, aliás, nos lembramos ali pelo início da narrativa, quando o narrador coloca o protagonista em um jogo de sinuca: “Era sua vez de jogar. Enquanto passava o giz azul na ponta do taco, estudou a disposição das bolas que ainda restavam na mesa.” (p.13) E, bola em jogo, vamos acompanhar o texto em que surgem trechos assim, o invulgar emergindo do normal: “O homem que ele procurava atendia pelo apelido de Normal. O negro de cabelo platinado. Fazia parte de uma dinastia de bandidos do extremo sul da cidade — o pai estava num presídio federal e um tio e um primo tinham morrido em confrontos com a polícia. Normal. Dava para sentir a ironia latejando por trás do apelido.” (p.28). Ou ainda naquela passagem em que se cria um clima tenso entre duas personagens: “Foi o instante de maior tensão entre os dois. Dava para ouvir os vinhos envelhecendo na prateleira.” (p.151). Ou ainda a imagem expressiva no trecho: “Nessa hora, as carretas que traziam os componentes eletrônicos do Amazonas entraram no posto de combustíveis e se encaminharam lentas e majestosas como dois paquidermes amestrados, para o estacionamento.” (p.50).
Dentro de uma narrativa tão tensa, intensa e violenta, há momentos de humor, como na explicitação do verdadeiro nome do marginal Moraes, chamado Jobair, e cujo apelido remetia a um jogador que “chegou a passar pelo Bangu” (p.21). Ou ainda na passagem que o investigador Ciro Lemos avalia os salgadinhos de um boteco: “[…] gostava de repetir que boa parte daqueles salgadinhos deveria receber voz de prisão, preventivamente, por tentativa de homicídio. A verdade é que só um incauto pensaria em comer ali.” (p.175). Ou ainda na irônica adjetivação de um silêncio entre um casal: “[…] um casal de meia-idade ruminava o jantar num silêncio conjugal” (p.53).
Não se explicita claramente o espaço em que se passa a história, pode ser São Paulo ou Rio de Janeiro. Em relação ao contexto da época (1973, 1974), em que o tempo da narrativa é trabalhado com quebra da linearidade, há referências à música “Detalhes”, de Roberto Carlos (p.184) e ao filme “O Jeca macumbeiro”, de Mazzaropi (p.125). Interessante é que, embora a narrativa se passe num tempo marcado pela repressão política da ditadura militar, o autor trata disso de forma lateral, fugindo dos grandes relatos de denúncia das torturas e prisões. Há uma passagem muito interessante, a propósito de urubus, em que novamente vem à tona o cheiro, numa conversa entre Miguel e os policiais: “Pense um pouco, Olsen continuou, ninguém gosta dele, é símbolo de mau agouro, come merda a vida inteira, não cheira bem. […] Com as penas fustigadas pelo vento, o urubu parecia incomodado com a friagem e a chuva. Miguel riu. É uma classe oprimida pelo sistema, doutor. Deixa os gorilas descobrirem que você pensa esse tipo de coisa.” (p.66)
O livro foi publicado agora, neste momento de pandemia. É possível extrair o tempo da enunciação da narrativa, sugerindo a época atual, neste trecho singular: “Eles não tinham um plano. Viviam um dia de cada vez, atentos, sem nunca improvisar. Não é tão simples quanto parece; uma hora as pessoas cansam, relaxam, baixam a guarda. Não os dois: cumpriam rotinas rígidas e protocolos inegociáveis, como se a cidade padecesse de uma peste contagiosa e precisassem se resguardar.” (p.222)
Marçal Aquino, em seu ofício, não baixa a guarda e expõe, ao nariz de seus leitores, o cheiro forte de uma literatura vigorosa.
Caio Junqueira Maciel, mineiro de Cruzília, autor do romance Um estranho no Minho e dos livros de poemas Pele de jabuticaba e Os sete sábios da Grécia & outros poemas safados.