Cultura

O bandolim | Celso Japiassu

A manhã levantou-se nas franjas de um vento muito frio para esta época do ano e o grasnar das gaivotas acentuou o sentido da solidão do dia. Pouca gente nas ruas, o distante barulho de motores parecia o ressonar dos últimos dias de primavera no Norte de Portugal. O velho dirigiu o olhar para a conhecida paisagem agora misturada em cores de azul e cinza.

 

O pensamento voltou-se para o passar das nuvens pesadas que lembravam mais um outono saudoso da primavera. Palavras soltas pareciam descrever o ritmo do tempo passando, a passar como o próprio vento que lhe emprestava sua moldura visível no farfalhar das folhas, no movimento das flores do jardim coberto pela neblina leve.

 

Vieram também sons desencontrados povoando a manhã, entre eles o que parecia ser o soluço de uma criança tímida. E veio também com eles a memória a perseguir o tempo, a lembrança de outros dias, quando as crianças corriam ao encontro dos ventos do verão chuvoso. E de quando se falava de esperas e esperanças. E também da imensidão da vida diante dos limites do mundo.

 

A música de um bandolim trouxe a poeira do tempo em que os sons se misturavam a lembranças abandonadas. Meninos corriam contra o vento, espalhavam seus gritos pela chuva. Os olhos do poeta cego procuravam ouvir e compreender o que pudesse existir de beleza em volta. E de poesia, sim.  Entender o que faz o fascínio da chuva na alma de uma criança e o que há de mágico numa ventania.

 

Mulheres de negro sentavam-se às calçadas e olhavam apenas o passar do mundo. Pouco havia de sons além da música do bandolim que era tocado por um velho de cabeça baixa, pernas cruzadas e ele também perdido nas fímbrias do seu próprio tempo. As nuvens tangidas pelo vento traziam também o coro das tempestades que tornavam a paisagem vazia como a solidão dos mortos.

 

Nenhum de nós conseguia entender além daquela música, mas sabíamos que algo existiria acima de todas as coisas, mesmo dos sons das notas espalhadas pelo espaço do tempo incompreensível. A distância e as emoções despertadas faziam pensar em algo que estava além, muito além do coro das crianças que corriam contra o vento desafiando o som, a beleza de um bandolim sob as nuvens aziagas do final de um dia.

 

Fotografia de Celso Japiassu

 

Celso Japiassu: Poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro. Trabalhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.

É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).




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