Sociedade

Em baixo deste céu, que é a morada de todos | José Manuel Simões

Mem de Sá, engenhoso, homem de táticas e intervenções radicais, estava chegando do Recôncavo Baiano onde tinha liderado a bem sucedida Revolta Brasílica. As tribos da região, já em si fragilizadas pelas maleitas e enfermidades trazidas de Portugal, foram dizimadas em larga escala. Sarampo, varíola, gripe, encarregavam-se de matar uns milhares, despovoando a mata atlântica. Não fosse a miscigenação entre portugueses, africanos e aborígenes dando vida aos mamelucos, cafusos, caboclos e outras mestiçagens, e os genes dos índios do Nordeste do Brasil dificilmente teriam sobrevivido. 

 

Ao perceber que os nativos estavam a rapidamente desaparecer da costa do Brasil – a maioria morta pelos canhões e pela doença, mas muitos deles, como os pitiguares, foragidos para dentro das matas – Mem de Sá incentivou a produção açucareira, estimulou o tráfico de escravos africanos e decretou leis que protegiam os indígenas da escravidão. O lema passou a ser “apanhar os gentios vivos para os catequizar”. 

 

Fomentou-se a incorporação dos nativos na sociedade colonial como mão-de-obra barata – um índio valia a quinta parte do preço de um escravo negro – passando a viver aldeados e a participar em lutas contra africanos ou outros índios fugitivos ou aliados de infiéis protestantes. O fidalgo perspectivou que com a catequização diminuiriam as práticas tribais, crendo que os indígenas, desde que vigiados, iriam perder o interesse pelo canibalismo, promiscuidade sexual e fetichismo. 

 

Homem de vistas largas que era, Mem de Sá impôs novas regras administrativas, garantiu a unidade da colónia, pediu ao rei que enviasse o padre espanhol José Anchieta – da recém-formada Companhia de Jesus – para a sua beira, e este tratou de se aproximar da ação. 

 

Anchieta, rosto magro, pálido, crucifixo ao peito, longas vestes escuras, bíblia numa mão e cajado para se amparar na outra, padecia de espinhela caída; tinha um ossinho, como o rabo de uma lebre, na boca do estômago, que lhe provocava fortes dores também nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que o acometia sempre que caminhava por entre as árvores seculares da floresta indígena por onde abria as rotas do sertão. 

 

Numa dessas incursões encontrou-se com os pitiguares, fugidos das bandas da foz do rio Camaratuba, e o canal da comunicação entre tribais e catequizadores pareceu estabelecer-se. 

 

Anchieta, cabelos brancos bem penteados para trás, olhos arregalados, andava curvado, levantava frequentemente dois dedos da mão direita em sinal de bênção e paz, era homem culto, curioso e interessado. Aprendeu tupi, compôs a primeira gramática desta língua então conhecida por “língua geral”, tornou-se amigo dos nativos que lhe chamavam “Mágico” e “Milagreiro”, cuidando de os catequizar e de defendê-los dos abusos e atropelos do colonizador que mesmo contra a lei continuava a tentar escravizá-los – atrelando-os aos carros de bois para trabalharem na plantação de cana-de-açúcar – ou violando as suas mulheres e filhas. Procurou, de várias formas, estabelecer negociações de paz entre os indígenas e os portugueses, esbarrando frequentemente na má vontade do colonizador ainda ressabiado com o fato dos gentios comerem gente humana e não se deixarem domesticar. 

 

Mem, letrado de Coimbra e do Direito, tinha-se tornado o homem mais rico do Brasil, dono de vastas extensões de terra, de centenas de escravos e uma luxuosa mansão onde chamava Anchieta para que este lhe desse conta do andamento das relações com os indígenas, mostrando ter por ele grande consideração. Num desses célebres encontros em que bebiam vinho trazido de Portugal e declamavam poemas – alguns da autoria de Francisco Sá de Miranda, irmão de Mem de Sá – José de Anchieta convenceu o Governador-Geral a prender e condenar à morte um refugiado francês, o alfaiate Jacques Le Balleur, por professar entre outras tribos a herética fé protestante. Na hora da execução, o carrasco negou-se a fazer o serviço e foi o próprio Anchieta, com laivos de senilidade, que o estrangulou com as próprias mãos. Para que todo o mundo soubesse que não admitia heresias.

 

Se aos franceses Anchieta tinha um ódio de morte, pelos indígenas tinha uma crescente afeição. Sinã “Luz Lilás” batizou-o com o nome de Piahy – supremo pajé branco – enfeitiçado que também ele estava pela espiritualidade do padre, veia de teatrólogo e poeta criador de inspirados versos plenos de fé e ocultismo. Anchieta escrevia e declamava, recitava erguendo os braços aos céus, como se fosse ator, enfático, dramático, aparentemente louco. No seio dos pitiguares criava, memorizava e mais tarde escrevia, em latim – num círculo em que quase sempre era o único ocidental – prosas de louvor aos anjos, espíritos e santos, como o “Poema à Virgem” que encerrava: His mihi sub tectis erit, his in sedibus omnes/ Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori!, ou seja, “Embaixo deste teto (Céu) que é morada de todos/ Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo”. 

 

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

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