Cultura

Ninguém conhece ninguém | Marcos Pamplona

NINGUÉM CONHECE NINGUÉM

 

O pó acabou. Liguei pro Lagarto.

 

Vou te fazer uma visita.

 

Mi casa es su casa. Traz um Marlboro.

 

Coloquei na mochila duas garrafas de vinho, duas carteiras de cigarro, o saca-rolhas. Na garagem, entrei no carro, abri uma garrafa, ajeitei-a entre as coxas. Estiquei o último teco da bucha na caixa do CD do Charlie Parker. Apertei o controle remoto. Bem no instante em que a garagem abriu a pálpebra metálica, um carro de polícia passou devagar pela rua. O motorista me encarou com aquele ar de nazi bem penteadinho e empoderado que você vê agora até em segurança de loja. Esperei que a viatura sumisse e fui na maciota, pra não dar bandeira. 

 

A casa do Lagarto fica depois de Almirante Tamandaré, num buraco encravado numa vila miserável. Você passa pelos barracos da estrada principal, para no posto de saúde da vila, desce a pé uma longa pirambeira de terra escavada pela chuva e chega ao mocó do distinto. Ali parece que é outro mundo, uma paz de araucárias e pássaros que só os fogos de São João dos Traficantes interrompem de vez em quando. No começo eu tinha medo de ir até lá, mas o Lagarto me tranquilizava. 

 

É tranquilo, teu carro é velho e fodido e você tem cara de pobre.

 

Eu sou pobre!

 

É o caralho. Você não tem nem ideia do que é pobre.

 

Sob o olhar apático das pessoas fodidas que estavam na fila do posto de saúde, estacionei o carro ao lado de um Uno. Desci com as garrafas na mão, num passinho lento pra não escorregar no cascalho e nas valetas. Só quatro por quatro encara a pirambeira, o que torna o esconderijo do Lagarto bem mais inacessível. Ele estava em frente à casa, descalço, sentado numa canga com caveiras e cruzes estampadas em branco sobre fundo preto. Fumava um baseado. Vivia assim, cheirava pra subir, fumava pra descer, num tobogã que nunca alterava sua cara seca, riscada de sulcos horizontais. Os olhinhos rasgados na cabeça ossuda te recebiam de uma vaga distância quase simpática e atenta.  

 

Deitei a mochila no chão e disse baixinho, apontando a canga:

 

Tem mais alguém aí? Vi o carro lá em cima.

 

Ela já tá indo embora. Mas é beleza. Na boa.

 

A garota apareceu, me deu um beijo sem tocar no meu rosto e pediu a canga.

 

Depois você pega, disse o Lagarto.

 

Levanta o rabo da canga, Lagarto.

 

Nosso amor não tem pressa.

 

Levanta o rabo. Vai lá no show do Anjo Caído.

 

Era uma morena gótica, toda de preto, as sobrancelhas raspadas da metade para as extremidades. Usava uma coleira com argolas e tinha dois piercings nos lábios e dois no nariz. Eu não sabia onde ele arranjava aquelas mulheres, mas gostaria de comer quase todas que me apresentava. Artistas hippongas astrólogas, burguesinhas pseudodespirocadas com o rosto iluminado por algum creme sutil, tímidas gorduchas que explodiam em quentes gargalhadas, militantes de esquerda de olhar lúbrico e violento: ele não errava, elas sempre tinham algo que me atraía. Ou então era a minha carência de mulheres reais, porque ultimamente eu só trepava com os fantasmas da internet.

 

A garota subiu a ladeira e nós dois olhamos para a sua bunda grande e firme na calça justa. Dei um tapa no baseado que o Lagarto me estendeu. Bebi o vinho, passei pra ele. 

 

O que é que tá pegando, ele disse.

 

Como assim?

 

Você tá com uma cara esquisita. De quem não salvou o cachorrinho do incêndio. Me dá o Marlboro.

 

Entreguei o maço a ele.

 

Tô fodido, Lagartex.

 

Vamos lá pros fundos. 

 

A casinha de madeira se debruça sobre o morro. Metade dela se apoia em altos pilares de concreto. Você atravessa a sala com cinco passos e acessa uma varanda aérea em que a gente vê, a meia altura, os troncos das enormes araucárias que sobem do brejo entre os morros. Nós sempre ficamos ali, sentados nos pufes brancos de corvim, diante da mesinha de apoio com nossas provisões pirotécnicas. Às vezes um esquilo ou um jacu surge nas árvores, a gente faz silêncio. Besouros tombam de costas no assoalho, remam no ar até morrer. E a luz do sol, estilhaçando-se nos galhos como vidro, fere a gente de uma beleza dolorida. 

 

Lagarto me entregou duas buchas, eu pedi três com os dedos. Fizemos o acerto. Não falei do preço do Marlboro, mas ele descontou a grana. 

 

Diga lá, mermão.

 

Tô fodido. Fodido é maneira dizer. Não, fodido. Fodido sim. É, fodido. Bem fodido. Eu tô fodido, fodido! Nunca estive tão fodido. Que exagero. Mas não, é, tô fodido. Fodidaço.

 

Ele ficou me olhando com o baseado perto dos lábios. Eu me levantei, andei pela varanda, soprei a teia de aranha que havia num canto do parapeito. 

 

Sem a Moema o circo murchou. E as meninas deram o pira, foram morar na casa da tia. Fiquei meio perdido sem as três. 

 

Por que as meninas foram embora?

 

Porque a mãe morreu e eu sou um bosta chapado do caralho.

 

E você já falou com elas, claro.

 

Claro. Acho que elas iriam morar embaixo da ponte mas não ficavam comigo.

 

Ele esticou na mesinha duas carreiras amareladas que tinham escamas, duas longas serpentes cintilantes, com um veneno certamente muito mais puro do que o daquela mistura branco-aspirina que me vendera. A dele era a do patrão, e eu não podia reclamar disso. O Lagarto misturava a cocaína boa que comprava na vila, do verdadeiro traficante, com alguma coisa branca e barata e vendia para os seus amigos da cidade, viciados cagões de classe média que nunca falariam com o verdadeiro traficante. A vantagem é que ele era meu amigo do tempo do Colégio Estadual, e a visita nunca se resumia a buscar a bucha e sair fora. 

 

Enrolamos nossas cédulas. Ele impassível, eu franzindo o nariz, aspiramos aquilo como dois tamanduás calejados. Lagarto bateu o canudo no tampo da mesinha.

 

Não seria melhor então assumir a bostitude de vez? Ser um bosta bosta, desses que não pensam que não são bosta? Eu te conheço há, o quê? Vinte e cinco anos? Você sempre teve vocação pra ser bosta. Como eu. A diferença é que eu investi no meu talento. Quanta gente desperdiça a sua vida lutando contra o fato de ser bosta, força a barra, vai trabalhar num escritório com trinta robôs, se enche de filho, come a farofa da amargura com a sogra no domingo, pra quê? Libera a merda toda que vai te fazer bem. As meninas se viram. Quantos anos tem a Lúcia?

 

Quinze. Vai fazer dezesseis.

 

E a Maria?

 

Dezoito. 

 

Com catorze eu esfregava calota no lava-car do Neri, papai no céu e mamãe na zona. Neguinho se vira. Daqui a pouco elas somem com algum imbecil formado em economia e só voltam pra te dar cueca no natal. Só sendo um bosta assumido você vai encontrar a iluminação. Chet Baker perdeu os dentes porque não pagou o trafica, mas era por isso que ele tirava do trompete até o suspiro do Arcanjo Gabriel. 

 

Você tem razão. Você tem razão.

 

Deixa rolar. Se ilumina na bostidão, meu irmão.

 

É.

 

A gente precisa de cachaça e cerveja.

 

Ele ia se levantar pra ver isso quando ouvimos o barulho do carro. 

 

Tá esperando alguém?

 

Não.

 

Fiquei paranóico. Lagarto escondeu calmamente o pó e os canudos sob o pufe. Ouvimos o carro, escondido pela casa, passar lá na frente onde acabava a estrada e arrastar os pneus pelo cascalho, numa freada que fez a gente se olhar. 

 

Fomos para o canto da varanda de onde se podia ver o fim da estrada. Era uma camionete nova, enorme, reluzente. Ficou à beira da pirambeira, na quina do aterro feito para as manobras. Mais dez centímetros e despencaria morro abaixo, capotando, batendo nas árvores até cair no brejo.

 

O cara que estava ao lado do motorista desceu da camionete, bota texana, camisa xadrez, parte do peito de gorila depilado à mostra. Desligaram a música sertaneja que tocava alto.

 

A gente errou a entrada, disse o agroboy, vendo eu e o Lagarto espantados, apoiados no parapeito. 

 

Acontece, disse o Lagarto.

 

O motorista, outro boneco inflável de academia, desembarcou, olhou o terreno em volta pra avaliar a manobra que teria de fazer. As calças jeans e a camiseta grudavam em seu corpo como alga no sushi, um rolo de músculos atado ao meio por um cinto largo com uma enorme fivela prateada. Dentro do carro, no banco de trás, havia uma garota. Ela abriu a porta, caiu da camionete. Ficou estatelada no chão. Completamente bêbada. O primeiro brutamontes olhou para o motorista, que juntou a garota com aborrecida delicadeza. Ela foi posta de novo em seu lugar.

 

Obrigado, amigo, fiquem com Deus, disse o motorista.

 

Nunca seria seu amigo, Batman, rosnou baixinho o Lagarto. 

 

Os caras manobraram e subiram o morro. Ouvimos o carro avançar com a pegada lenta e firme de quatro por quatro até chegar ao topo.

 

Merda, eu disse.

 

Merda o quê?

 

Estranho. Por que aquela garota se jogou do carro? 

 

Foda-se, tudo filhinho de papai, que é filho da puta. Sem demérito da puta. Vamos dar mais um teco.

 

Sentamos nos pufes, cheiramos, bebemos. Eu não esquecia a garota. Estava com parte da camisa pra fora da calça, amarrotada, os tênis sujos, delineador preto escorrendo pela cara. De repente fiquei angustiado, ela podia ser a Lúcia. Onde andariam as minhas filhas queridas? Queridas um catzo, cagaram pra mim, depois que a mãe morreu foram logo morar com a tia, porque lá é tudo muito equilibrado, comida vegana, suco de kombucha e ioga, tio intelectual e sensível que defende a causa dos povos originários. Mas eu deixei, me fiz de traído mas deixei. Fiquei até aliviado quando elas foram embora.

 

Lagarto coçou a cabeça raspada, sem alterar a expressão grave. Levantou-se devagar, entrou na casa, voltou.

 

Cachaça só tem um pouquinho e a cerveja acabou. Vinho deixa a gente borrachudo. Venha.

 

Entramos no jipinho capenga dele, subimos a pirambeira. Andamos pela estradinha, atravessando o corredor poeirento entre os barracos da vila. Depois veio a parte mais bonita, das chácaras antigas que já existiam antes de cair aqui a escumalha que a centrífuga da grana joga pra longe do centro dourado. Chegamos a um pequeno armazém improvisado numa casinha de tijolos sem reboco. Uma senhora negra, de seios enormes apoiados na barriga de rei Momo, falou com a gente através das grades azuis que bloqueavam a porta.

 

Tudo bem, seu Ericssom?

 

Eu havia esquecido que o Lagarto tinha nome de gente.

 

Dona Rosa, a senhora tem Pitú? 

 

Não. Só tem Corote.

 

É brabo… Mas manda. E dez cervejas.

 

Como se estivéssemos presos em liberdade, ficamos olhando a mulher através das grades. Ela sumiu lá dentro por um bom tempo, achamos que tinha esquecido de nós quando surgiu com as garrafas. 

 

Na volta o Lagarto de repente parou, engatou a ré. 

 

Você viu? 

 

O quê? 

 

A camionete dos mauricinhos, ali naquele haras.

 

Fomos de ré até o haras.

 

Um velho passou de bicicleta, uma perna mais curta que a outra, cumprimentou com a mão sem olhar pra gente. Em contraste com a miséria em volta, o haras exalava dinheiro: grama bem aparada, árvores pintadas de cal na base, um lago em forma de ameba, rodas de carroça com vasinhos de marias-sem-vergonha. Dava pra ver as baias, os piquetes e, lá longe, a camionete ao lado de uma casa enorme. Parecia tudo tranquilo. Numa casinha menor, mais ao fundo, surgiu uma mulher na janela, disse alguma coisa pra dentro. Depois um homem de chapéu de palha saiu pela porta da casinha, caminhou em direção à casa grande. Ajeitou várias vezes o chapéu e a calça. O Lagarto arrancou. Eu abri a Corote, dei um gole. Era medonha, mas era cachaça e os neurônios estavam tinindo, eu precisava de um algodãozinho entre os cristais.

 

* * *

 

Enquanto estou aqui, outro homem está deitado em Quioto, ao lado de uma garota à deriva como esta ao meu lado. A garota de Quioto também dorme há doze horas, também recupera aos poucos sua cor natural e também está com um pijama rosa-claro salpicado de morangos, que não é dela. Seus cabelos são iguais, curtos, a franjinha de um loiro golden retriever fazendo um risco preciso sobre a testa esférica, as duas estão com uma perna ligeiramente arqueada sobre a outra (sobre a outra perna, embora não seja despropositado imaginar que as pernas antípodas se confundam). O homem também passou dos quarenta, é meio gordo e rosado como eu, semicalvo, o olhar febril aprisionado na penumbra da carne, sentado de bermudas na cama, segurando o copo de uísque com a boca aberta, a pensar que, do outro lado do mundo, em Curitiba, outro homem como ele está ao lado de uma garota que tem quase a idade da sua filha mais velha. Ouve os pneus dos carros zumbirem na lâmina de chuva do asfalto, o tamborilar das gotas na velha calha, pensa como eu que desperdiçou sua vida dentro de uma garrafa por não saber ou não encontrar motivos para abraçar o que acontecia lá fora, no mundo externo, a ponto de desenvolver uma pança e uma autocompaixão que crescem gelatinosamente, a musculatura viril adormecida sob camadas de culpa e indiferença. Meu semelhante japonês beberica o uísque, pensa que o trabalho está atrasado, olha para a bundinha apetitosa da garota ao mesmo tempo orgulhoso e apático, sabendo que ela só chegou a ele porque a maré a lançou na sua praia. 

 

Mas não, não é isso, deve ter diferenças, mesmo que sejam pequenas. Sempre tem. Não chove em Quioto, por exemplo. As nuvens negras acumulam um rancor que não encontra descarga. A garota está deitada, mas ouve música com headphones, balança um dos pezinhos. O japonês não se ilude de que ela poderia amá-lo. Apesar de beber como um pirata, está impregnado de xintoísmo, tem algo de Buda bebum, o que dá um aspecto mais despojado à sua imobilidade. De qualquer forma, o que me leva a esses pensamentos não são as semelhanças, essas até me divertem. Rio só de pensar em clones programados para pensar que são únicos. O que me interessa é a concomitância das consciências ao redor do planeta – tenho tanto pavor dela quanto de altura. Vejo o abismo de olhos, milhões, bilhões de pensamentos aprisionados em cacholas solitárias neste exato momento. A vertigem de saber que aquilo que chamamos de Realidade é um mar de faiscantes subjetividades, cada breve lampejo a acreditar que é todo o oceano – preciso parar. 

 

Hoje não vou cheirar, penso. Só beber, e pouco.

 

Mas o que fazer com esta garota? Comê-la, se ela der mole (o que é pouco provável, mas pode acontecer). Comê-la três, quatro, dez vezes. Se ela não der, levá-la o mais breve possível para a sua casa, que eu não preciso de uma amiguinha.

 

A garota acorda. Me olha como se tentasse divisar um veleiro no horizonte ensolarado. 

 

Oi…

 

Ela se examina, estranha o pijama, a cama, eu.

 

Você deitou na cama da minha filha, mas veio pra minha no meio da noite, explico logo pra que ela não se assuste. 

 

Não toquei na garota, nunca tocaria. Quer dizer, só encostei de leve quando a ajeitei na cama. Aliás, é uma cavala.

 

Ah, diz a cavala.

 

Quer tomar um banho? Comer alguma coisa?

 

Ela se ergue sobre o cotovelo, faz uma expressão de dor que cobre sua testa de pequenas manchas brancas. 

 

Onde tá minha roupa? Não tô com fome.

 

Tua roupa tá um nojo. Mas eu te empresto uma da minha filha. 

 

Faz um breve exame do ambiente, deixa a cabeça cair no travesseiro. 

 

Agora eu lembro… eu vim pro teu quarto porque eu tive um sonho horrível.

 

Não tem problema. Eu vou pegar a roupa. E uma toalha.

 

Você me deu carona.

 

Isso, encontrei você na estrada. 

 

Eu não tinha um puto no bolso. Tentei chamar um uber, mas o celular ficou sem bateria.

 

Você não estava bem, entrou no carro e desmaiou. Depois me conta o que aconteceu lá. Como é que você se chama?

 

Jéssica. Com k. 

 

Jéssika já está há uns quarenta minutos embaixo do chuveiro. Bato na porta, mas ela não responde. Imagino que dormiu lá dentro, ou algo pior. Bato novamente. Nada. Quando penso em arrombar a porta, ela diz “oi, já vou”. 

 

Ela surge na cozinha com o vestido comprido que Maria dispensou, florezinhas vermelhas apagadas sobre fundo verde-escuro, sem cintura. Parece um menino, um ser andrógino (o cabelo curto, a franjinha, os braços finos de músculos bem delineados) em roupas de senhora de meia-idade. Come só um hambúrguer dos dois que eu fritei. 

 

Não tem algo pra beber?

 

Tiro uma Fanta da geladeira. 

 

Tem algo mais forte? Eu já estou boa. Como é mesmo o seu nome? 

 

Bibi.

 

Isso é nome ou apelido?

 

Meu nome é Bernardo, mas todo mundo me chama de Bibi.

 

Que fofo. 

 

Sorrio, sabendo pra onde a coisa vai. Fofos não despertam apetite sexual. Você pode ser canalha, frio, falastrão, arrogante, tarado, mas não fofo. Fofos são eletrodomésticos, só entram no foco delas quando querem se casar.

 

Ela sai da cozinha com o copo e encontra as bebidas sem dificuldade, como se um homem da minha faixa etária sempre tivesse um bar na sala. Mas é coisa da falecida, para as visitas que nunca recebíamos. 

 

Posso?, diz ela, abrindo a vodka antes de eu responder. Já percebeu que pode levar pelo nariz o boi velho com sua lascívia mendicante.

 

Anda pela sala vendo os livros. Depois vai ao quarto das meninas, volta de lá com o gigantesco urso marrom de pelúcia. Senta-se no tapete abraçada a ele. Pego meu uísque, me ajeito no sofá. Jéssika avalia a foto no porta-retratos da estante: Moema e eu, as meninas ainda crianças, sentados numa toalha de piquenique no Parque da Barreirinha. Moema sorri para Lúcia, que está no seu colo; eu estou em abstinência, não suporto família, piquenique nem parque e dou um risinho cãibrico para a câmera. Maria, com a cabeça inclinada, olha para alguma coisa atrás do fotógrafo. Tudo isso me consterna, o passado é um erro irremediável que dói.

 

Onde está a sua mulher?

 

Morreu.

 

Sinto muito… E você tem duas filhas.

 

Tenho, mas elas não moram mais aqui. O que aconteceu naquele haras?

 

Ela olha para o tapete e coça a ponta do nariz.

 

Os caras queriam me comer, as usual.

 

Eu não fiz nada com você, pode ficar tranquila.

 

Uma garota nunca pode ficar tranquila.

 

E por que você foi com aqueles idiotas pra lá então?

 

Eles apareceram no bar, eu tava torta de tequila, perguntei se eles tinham speed. Me levaram pro carro e fodeu. Tipo um sequestro. Tem um cigarro?

 

Speed?

 

Metanfetamina.

 

Ela acende o cigarro, depois de tragar deixa-o pendurado no beiço, como uma fumante experiente. Mas aquilo irrita um pouco os seus olhos, pisca várias vezes. Uma jovem aderindo com voracidade aos vícios dos mais velhos, sujando-se o mais rápido possível para esconder o anjo assustado que agoniza em seu corpo túmido, escrevo mentalmente.

 

E como você se livrou deles?

 

Foi sorte.

 

Solta uma baforada frouxa, com a boca bem aberta. 

 

Você leu todos estes livros?

 

Quase todos.

 

Adianta?

 

Adianta o quê?

 

Melhora alguma coisa?

 

Não. Mas eu gosto. 

 

O que você faz da vida?

 

Faço frila de publicidade. Ganho dinheiro fazendo as pessoas pensarem que um iogurte com probióticos vai desobstruir até os seus chacras. 

 

Fico deprimido, penso que tenho que dar logo um teco pra levantar o astral. De ressaca eu só penso em morte. Dou um teco e a cadela da morte vai pra um canto, esqueço os seus dentinhos afiados de tanto roer osso. Maluco, eu sou eterno.

 

A garota dança abraçada ao urso, bebendo a vodka por cima do seu ombro felpudo. Reparo que o David Copperfield avança para fora da linha dos livros, quase caindo da estante. Vou até lá ajeitá-lo, mas antes puxo o livro para folhear as velhas e queridas páginas. Só então vejo que, nos fundos do nicho onde está o livro, tem uma carta antiga. É de Moema, endereçada a Cíntia, sua maior amiga desde os tempos da faculdade (Cintia ficou tão abalada no velório que nem chorava, sentada num canto como se também estivesse morta). O envelope está amarelado, cheio de manchas pardas. O selo mostra Santos Dumont e o 14-bis, em sépia. A letra é a de uma Moema jovem, numa grafia mais redonda e menos inclinada do que os garranchos nervosos com que ela mais tarde me deixaria bilhetes sob o ímã da geladeira (“hoje 16 hs pegar Lúcia no sapateado, casa amarela nas Mercês”). Coloco o livro no lugar, deixo a carta sobre ele. Volto pro sofá. Não quero ler as palavras do espectro de uma mocinha enquanto estou com outra, ali, viva, rebolante. As nádegas perfeitas de Jéssika mordem o vestido frouxo de Maria – com o copo na barriga penso em como é perversa a juventude. Eu não devo dar nem um passo na direção dela. Estou destreinado, solitário demais, seria destruído por uma recusa (“velho nojento!”, “não tem noção?”). Opto pelo silêncio circunspecto, talvez atrativo para uma jovem despirocada e tagarela. 

 

Quer dançar, Bibi, bebê, bobô, bubu? 

 

Sorrio para ela como um cowboy de filme de faroeste vagabundo. 

 

Não sei dançar.

 

O que aconteceu com a sua mulher?

 

Ela morreu.

 

Isso eu já sei. Do quê?

 

Câncer.

 

Coitada!

 

Jéssika começa a conversar com o urso. Faz uma voz infantil anasalada para simular a fala do bicho de pelúcia.

 

Eu quero sorvete, mamãe!

 

Pede pro tio Bibi.

 

Não… Ele é brabo. 

 

Ele não é brabo, Júnior. Ele é bonzinho. Pede com jeitinho.

 

Tio Bibi, eu quero salted caramel icecream.

 

E sem usar o nariz, com boca de peixe, faz voz grossa para me imitar.

 

Agora não. Agora eu não vou te dar sorvete. Agora eu quero comer a tua mãe.

 

Ah tio….

 

Primeiro eu vou tomar um uísque e tentar comer a tua mãe. Depois te dou o sorvete.

 

Fico com raiva dela, presunçosa, debochada. Mas é claro que eu quero comê-la.

 

Você quer dar pra mim, Jéssika, é isso?

 

Hahaha! Hoje tá difícil. 

 

A esperança, essa lacraia, tateia as patinhas asquerosas pelo meu peito: hoje não, amanhã talvez.

 

Você não vai abrir?, diz ela, apontando a carta de Moema sobre o livro de Dickens.

 

Não.

 

Você ficou esquisito quando viu a carta. De quem é?

 

Não te interessa.

 

Você gostava da sua mulher?

 

Um pouco. No começo. 

 

Só no começo? Quantos anos vocês ficaram juntos?

 

Quase vinte. Eu me casei cedo. Aos vinte. Não, vinte e um. 

 

Caraca. Você não comeu ninguém esse tempo todo? Quer dizer, ninguém a não ser ela.

 

Ninguém. Nem ela… Brincadeira, a gente transava de vez em quando. 

 

Não digo a Jéssika que Moema fazia aquilo com asco, muito raramente, no escuro, depois ia correndo se lavar no banheiro. E que tive dois deslizes mal cometidos, dos quais ainda me envergonho por não ter fornicado mais e melhor. Até nisso fui hesitante, me revelei um péssimo adúltero. Me faltava aquela lubricidade cínica dos personagens do Nelson Rodrigues. Eu devia ter escapado mais da gaiola mental do casamento, a vida é uma só. Aliás, pra não fazer o surrado papel de canalha, devia ter escapado de vez e me separado. Seria até melhor pras meninas. Imagino um Bibi solto, comendo todo mundo, de bem com o pau e com a vida. Mas a imagem submerge numa angústia sutil.

 

Jéssika pega a carta.

 

Larga isso, digo.

 

Não consigo imaginar ficar vinte anos do lado da mesma pessoa. É da sua mulher? Acho tão romântico isso que faziam de mandar carta. Lê pra mim, Bibi! Nunca mandei nem recebi uma carta.

 

Ela me estende o envelope. Guardo a carta no bolso da calça.

 

Por favor, Bibi! Estou mo-rrendo de curiosidade. Juro que não vou contar nada pra ninguém. A gente nem tem amigo em comum!

 

Fico quieto. Minha vida é meu templo. Estou preso nela, é um horror, mas é meu templo. E nesse momento não quero profanar esse horror sagrado. Jéssika se senta ao meu lado, cruza as pernas. As coxas apetitosas surgem da saia repuxada. Tenta roubar o envelope, eu a empurro um pouco forte demais.

 

Seu animal!, ela grita. Foda-se! Eu só queria saber o que é que as pessoas escrevem nas cartas. 

 

Dou duas palmadinhas no encosto do sofá.

 

É quase a mesma coisa que elas escrevem nos e-mails. Mas mais afetado, tem mais pompa e circunstância. 

 

Eu não uso e-mail. Lê pra mim. Por favooooor!

 

Num gesto irritado, pego a carta no bolso. Rasgo uma das bordas laterais. Tiro de dentro uma folha de revista dobrada duas vezes. No verso de uma matéria intitulada Os Tesouros da Grécia, há uma imagem meio azulada da Vênus de Milo. Moema desenhou os dois braços faltantes na estátua, com caneta preta. Abaixo dela, escreveu: “Você é a coisa mais linda que aconteceu na minha vida. Quero morar na tua boca. MO-AMA, 23/01/2001”. 

 

O que está escrito?

 

Besteira. 

 

Puta que pariu, ela diz, pulando sentada no sofá como se estivesse cavalgando. A saia sobe mais, vejo uma nesga da calcinha branca.

 

Agarro o pé de Jéssika e chupo o dedão. Ela ri como criança safada, se contorce e se livra de mim. O movimento do vestido deixa eu ver uma cicatriz grande perto do seio esquerdo, cuja forma lembra o riso do gato de Cheshire. Parece talho de faca. Será que ela é garota de programa? Ou teve uma infância horrível? Mãe ou pai psicopata, sei lá. Tanta coisa pode levar uma faca ao coração.

 

O celular dela toca com um som diferente, uma horrorosa sirene anunciando ataque aéreo.

 

Ela pega o aparelho na mesa de centro. Dona Hilda!, suspira. Vai pro jardim dos fundos. Quando volta, está séria, esfrega a língua na gengiva superior.

 

Vou ter que ir. Tenho que trabalhar.

 

Ela chama um táxi no aplicativo. Sinto um misto de tristeza e alívio, algo que me torna automaticamente pesado, sedentário. 

 

Que pena, digo meio rouco. Posso até ver as bolsinhas azuis sob as minhas pálpebras inferiores, o suor que brota na careca entre os cabelos ralos. Um velho. Ufa.

 

Jéssika coloca as roupas sujas numa sacola de plástico que eu lhe dou. Vamos até o portão, o táxi já chegou.

 

Amanhã devolvo o vestido, tá bem? Guardei a localização da tua casa.

 

Sei que é mentira, ela nunca mais voltará.

 

Os caras lá no haras tentaram te estuprar?

 

Tentaram. Mas eu gritei feito uma louca e o caseiro apareceu. Ouvi ele dizer que não adiantava eles serem filhos de não sei quem, que ia chamar a polícia. Eu aproveitei a discussão e fugi pela porta dos fundos.

 

Pode ser mentira também. Ela falou que o celular ontem estava sem bateria e o usou agora há pouco, sem carregar. Mas de uma forma ou de outra todos mentem, ninguém conhece ninguém. 

 

Agora que ela vai sumir, sinto ternura pela menina curiosa com uma cicatriz no peito.

 

Desculpe eu ter feito aquilo. Eu não sou…

 

Não tem importância. Tchau, Bibi. Obrigado por tudo.

 

Entra no táxi. Manda um beijinho com a mão. O carro some na esquina. Adeus, Jéssika.

 

Volto pra sala, faço uma carreira. Inspiro o veneno, profundamente. O rastilho químico arde nas fossas nasais, meus olhos se enchem de água. Passei a vida ao lado de uma mulher que gostava de outra, é isso? Quantas vezes elas ficaram sozinhas na casa da Cíntia, “tomando umas”. As viagens, os eventos a que iam juntas, vernissagens, shows, lançamento de livro, aniversário de amigo, o olhar prazeroso com um halo de ansiedade quando se viam, as conversas madrugada adentro no aplicativo, tudo agora me cai na cabeça como o desmonte de uma ambiguidade longamente pressentida e estupidamente ignorada. Foda-se.

 

 Abandonado no tapete, o urso me encara. Seus olhos de vidro só falam de ausências.

 

Fotografia de Marcos Pamplona

Marcos Pamplona é escritor e editor. Sua bibliografia inclui os poemas de “Transverso” (Kotter, 2016) e as crônicas de “Ninguém nos Salvará de Nós” (Kotter, 2021) e “O anjo da incerteza” (Arte & Letra, 2023). Vive em Lisboa, onde atua como editor da Kotter Portugal.

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