Cultura

“Não alimente a escritora”, de Telma Scherer | Telma Scherer

Fotografia de Telma Scherer

“Não alimente a escritora”, Telma Scherer. Editora Hecatombe / Urutau

 

Excerto

 

não alimente a escritora

(trecho inicial)

 

No dia em que me prenderam 

eu não tinha um puto,

mas não importava. 

Apenas a poesia 

que eu falava

entre goles

de bolhas de sabão

é que me prendia 

à praça, ao público,

ao pobre artista que, comigo, brigava contra a polícia.

 

No dia em que me prenderam uma velha protestou:

invocou o Castro Alves

pra pagar as minhas contas.

Aquela praça não era

pra condor.

 

No dia em que me prenderam 

fazia um bruto calor — e eu

de preto ((suando, 

como sempre,

— no palco, na rua, na luz 

no meu livre pensamento —

 

na minha pele sua 

era sempre

um calor de outros spots

 

— os spots

que ela provava 

(a iluminadora)

jogando no ar a fumaça 

a ver para onde é que ia 

o vetor do refletor.

 

Ela

afinava as luzes 

dentro do teatro 

como um ancião 

cachimba

a sua pajelança.

E refinou

meu ato, 

pura dança.

Na face da fumaça 

eu

me espaçava:

em ruas e em valas.

 

As calçadas

 reluziam-me, 

sem palco,

na Lomba do Pinheiro 

ou no Morro da Cruz, 

no Cristal, na Restinga 

(com Odilo e

a Carmem Vera,

o casal que lia Kant),

 

e no Jardim Botânico 

com a dona Gerci, 

que tinha lãs, linhas, 

sementes,

achados profiláticos,

cantos suaves e berros

                a arrebentar

as cabeças dos maridos.

 

Pura dança.

 

Eu

me espaçava:

em ruas e em valas, nas calçadas

e na praça

onde luzia, presa.

 

Fotografia de Telma Scherer

 

Telma Scherer e a poesia aprisionada

 

Fernanda Melchionna*

 

Na Feira do Livro de 2010 em Porto Alegre, ela foi presa pela Brigada Militar sob a vaga acusação de perturbar a ordem pública durante uma performance. No dia em que a prenderam, disseram que ela não tinha, que não era, que nada tinha sido, que ela não tinha nada. Ela era um corpo, um obstáculo que perturbava as compras e as vendas na Feira do Livro.

 

Escoltada por dez policiais e duas motocicletas, ela foi presa. As câmeras apontaram para ela como as escopetas que impediram sua liberdade.

 

Essa prisão, mais de dez anos depois, ainda permanece. O dia que nunca terminou, cercado de leitores de bestsellers, aqueles que têm um teto sobre suas cabeças, poltronas confortáveis, que se perguntam que crime ela cometeu, porque se ela foi presa, deve existir uma razão.

 

Ela “atrapalhava” a Feira, porque estava numa casinha de cachorro, sobre um cobertor vermelho onde havia livros. E um cartaz na entrada da casinha: “Não alimente o escritor”. Onde a escritora estava acorrentada, tão rodeada de liberdade e espaço, de literatura, de papéis pintados, no meio da praça. Então a levaram.

 

E essa prisão foi a continuação, não o fim do espetáculo. Tinha começado muito antes, quando ela começou a produzir arte, poesia.

 

Aquele dia continua, e vem de sempre, como agora. Vem da liberdade ilusória de falar e de ser ouvida quando ela tenta dizer que o show acabou, para que eles possam ir se refugiar em seus best sellers ou votar em Bolsonaros.

 

Esta prisão é a da artista e sua obra, de sua atitude e seu significado. Está também presente neste livro, nesta poesia livre e agredida, como a vida. Nestes dias em que uma mulher é presa a cada momento. Nestes tempos em que a liberdade é poesia, na performance de uma existência plena, livre e solidária. E neste livro.

 

* Fernanda Melchionna, Deputada Federal (Rio Grande do Sul) pelo PSOL

 

O acontecimento e a poesia

 

Tereza Virginia de Almeida*

 

Porto Alegre. Novembro de 2010. Na Feira do Livro, uma poeta presa a uma casinha de cachorro realiza uma performance em protesto pelas condições de vida dos escritores. A ação se chama “Não alimente o escritor”. Entretanto, alguns se sentem ofendidos ou incomodados com o protesto e chamam a polícia. A poeta Telma Scherer é presa e levada à delegacia para averiguação.

 

            O resumo acima é o que se pode construir ao realizar uma busca no Google para entender o acontecimento que dá origem a este instigante livro de Telma Scherer, intitulado Não alimente a escritora.

  

             Tal como no “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, alguns poucos versos dariam conta de reviver a cena e sua violência. Entretanto, Telma, de forma encantatória, expande o acontecimento de tal forma que escreve um livro com um poema de algumas centenas de versos, uma obra envolvente que se define como uma performance inteiramente nova em que o acontecimento é referenciado não em estado bruto, mas desdobrado de forma a expressar aquilo que se tornou ao longo dos anos. 

 

              Sim. A memória é o fio condutor que perpassa o poema. E a cada palavra, frase ou verso, o acontecimento, essencialmente violento, se presentifica pela força com que se impõe à subjetividade. A cada silêncio, o acontecimento se transmuta para expressar as marcas deixadas no corpo da poeta. Há a presença de uma iluminadora convidando a nos ver diante de uma cena teatral. São muitas as personagens que perpassam pela memória do acontecimento. E estas surgem ora em breves alegorias, ora de forma direta. Mas praticam ações dentro da ação maior que é o próprio poema. Há a presença dessa iluminadora que nos alerta para o caráter performático do que lemos. E há personagens intrinsecamente ligados à violência: os dez policiais, os jornalistas, os advogados e muitos outros e outras que se colocam em torno do acontecimento a mostrar que à violência maior, de ser presa, se seguem as outras violências como aquelas produzidas pela opinião pública.

 

               Nós, leitores e leitoras, nos tornamos coadjuvantes na medida em que somos envolvidos(as) por uma rítmica delineada pela medida de cada verso. Sim. A cada respiração que o poema sinaliza, pulsa em nós a violência da prisão de Telma Scherer, pois o ritmo é um dos elementos que permite à poeta transformar o acontecimento em poesia. Logo de início, ela dirá várias vezes “No dia em que me prenderam”. E uma vez que o ato de ler nos coloca à mercê do ritmo do poema, com suas cesuras e respirações, nos sentimos igualmente presos(as) e tão ávidos(as) por libertação como a própria poeta. No ato da leitura, participamos da cena, deste Não alimente a escritora, esta nova performance que revive a violência sofrida durante a anterior. Sim. Porque, apesar do título semelhante, é preciso compreender que o poema não é apenas o testemunho sobre a ação ocorrida em 2010. O poema é em si uma nova ação. Uma ação que desdobra o acontecimento de 2010 e o atravessa por marcas, traumas e reflexões.     

    

Mas e o título? Vale revisitar a performance primeira. A poeta, presa a uma casinha de cachorro, e o título: “Não alimente o escritor”. Se os protestos eram em torno das condições financeiras dos que produzem arte e desejam viver desta, o título é abertamente irônico. Ao mesmo tempo, expõe a analogia entre o cão domesticado e o poeta, este a que o sistema literário também domestica com suas regras e convenções. E o que significa a repetição do título no poema escrito tantos anos depois? Pode remeter tanto à memória da performance de 2010 como pode demandar que se ressignifiquem as palavras, em que se insere agora o gênero feminino: Não alimente a escritora. Ocorre que, em sua potência de imagens, o poema está a pedir alimento. Ao demandar uma rítmica no ato de leitura, o poema está a pedir um investimento afetivo que é uma forma de alimento. O título soa agora como um alerta: Não alimente a escritora porque se você alimentar terá como resultado o que pode a poesia fazer.  

 

Ao longo do poema, encontramos pouca explicação para a prisão de Telma, nenhuma referência ao conteúdo da averiguação, nenhuma informação sobre a soltura. A memória da poeta se centraliza na violência da prisão, da qual todos os outros elementos advêm. E assim, como a poeta em sua performance, o poema se espaça circundando o acontecimento ao mesmo tempo que o retém naquilo que é essencial. A ausência de explicações dá a dimensão da arbitrariedade e as indagações permitem reviver a angústia da poeta ao ser vitimizada.   

 

              “Não alimente a escritora” faz parte da coleção Quem dera o sangue fosse só o da menstruação, composta por livros de autoria feminina. O título sinaliza que a temática maior é a da violência vivenciada por sujeitos femininos. E no texto de Telma Scherer, a voz feminina fala bem alto e denuncia não apenas a violência da prisão, mas outras violências cotidianas. Tudo, entretanto, se dá por meio de um lirismo potente, como se os versos com que Telma envolve e desdobra o acontecimento, ao ressoarem na voz poética, levassem à libertação. 

 

               Telma Scherer é poeta experiente e de excelência. Não alimente a escritora é seu sétimo livro de poemas, o que já a faz autora de uma obra literária que lhe garante presença singular no cenário da literatura brasileira contemporânea. 

 

                A trajetória de Telma passa por uma série de oficinas e performances.  Estamos diante de uma poeta consciente do papel da voz como materialidade tanto na produção quanto na recepção de poesia. Não alimente a escritora é um poema que pede para ser performatizado. Experimente o(a) leitor(a) vocalizar seus versos. O que advém é outro acontecimento em que a poesia mostra seu poder de desafazer amarras ali mesmo onde reverberam as mais sutis sonoridades. 

 

* Tereza Virginia de Almeida, Professora Titular de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.

 

Fotografia de Telma Scherer

Telma Scherer trabalha nos campos da literatura e das artes visuais. É artista formada pelo CEART / UDESC e professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina, também graduada em Filosofia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem doutorado em Literaturas e mestrado em Literatura Comparada. Trabalhou no campo da performance de poesia, realizando apresentações e oficinas para diversas instituições brasileiras. Trabalha com a poesia expandida, com pesquisa sobre a Escrita Criativa e os modos de contágio entre literatura e Artes Visuais. Publicou os romances “Memórias dos meus cios” (Terra Redonda, 2022), “As avessas” (Ipêamarelo, 2021) e “Lugares ogros” (Caiaponte, 2019), o livro de artista “Entre o vento e o peso da página” (Medusa, 2018, resultado de pós-doutorado realizado no PPGAV/UDESC), e sete livros de poesia, entre eles “Squirt” (Terra Redonda, 2019), semifinalista do prêmio Oceanos, “Depois da água” (Nave, 2014), “Rumor da casa” (7 Letras, 2008), e os mais recentes “Oponente + Isto” (Terra Redonda, 2022) e “Não alimente a escritora” (Hecatombe, 2021, disponível em Portugal desde março de 2022).

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