Muita coisa na cabeça
Nem sei do que vou falar hoje. E só trabalho, pressão,
preocupação. Muita coisa na cabeça. O deputado está em
campanha de reeleição, e eu, como chefe de gabinete, tenho que
coordenar mil compromissos. Mas aconteceu uma coisa, dias
atrás, que ficou na minha cabeça até agora, sei lá por quê.
Foi de manhã: desci pra garagem às sete e meia, como
sempre. Já ia dar partida no carro, quando vi que não tinha mais
cigarros no porta-luvas. Saí do carro, subi a rampa até a calçada
e fui comprar quatro maços na banca de jornal em frente ao meu
prédio. Parei um instante na entrada da garagem, abri um maço
e acendi o primeiro cigarro do dia. Acho que eu estava assobiando
o novo jingle da campanha do prefeito, que é nosso aliado. Olha que meu assobio é meio desafinado, mas essas musiquinhas
grudam no ouvido da gente. Aí ouvi alguém reclamando:
— Tá contente, né, filho da puta?
Uma voz rouca, raivosa. Parece que eu estava incomodando
a pessoa com o meu assobio. Procurei ver quem era, topei
com o sujeito deitado no chão, junto de um canteiro cercado,
mais alto que a calçada. Um negro velho, grandalhão, de cabelo
afro e um paletó preto muito surrado. Eu já conhecia esse indivíduo
de vista. É um pedinte que anda ali pela região. “Anda” é modo de dizer.
— Me ajuda aqui com a cadeira – ele mandou.
A cadeira de rodas estava encostada no canteiro. Ele não tem a perna esquerda, amputada um palmo abaixo da coxa. Circula pela avenida chacoalhando uma cuia de lata com moedas. Não pede nem agradece a esmola: só sacode a cuia, tilintando as moedas.
Eu já vi isso.
— Ajuda aqui, porra – ele esbravejava.
Eu vacilei, claro. Tinha saído do banho, estava estreando um terno novo. O que ele podia fazer? Me insultar, berrar um monte de palavrões? Mas a cara do fulano era tão agressiva que acabei obedecendo.
Suspendi aquele peso-morto pelos sovacos e o ajudei a encaixar a bunda na cadeira. A roupa ensebada dele roçou no meu terno, o fedor azedo ardeu nas minhas narinas. Eu tenho refluxo, senti o café da manhã voltando na boca. Em vez de agradecer, ele me despachou:
— Pode ir. Vai, passarinho. Continua assobiando.
Não sei por que, me senti envergonhado. Acho que por medo do vexame. Um vizinho podia sair do prédio e ver aquele mendigo falando comigo daquele jeito. Desci depressa a rampa da garagem e pedi ao Jeovaldo, o garagista, um pouco de álcool para limpar as mãos. Confidencialmente: o deputado costuma desinfetar as mãos com álcool, quanto tem contato com muita gente. Ele é hipocondríaco, morre de medo de germes e bactérias.
Bom, nem sei por que falei disso. É que estranhei a truculência do tipo. Ficou irritado com o meu assobio, veja se pode. Como se eu devesse alguma coisa a ele. O engraçado é que, mais tarde, lembrei de uma historinha que me contavam quando era criança: que Jesus gosta de se disfarçar de mendigo para testar o coração das pessoas. Que idiotice, não é?
Ah, a minha hora acabou? Bom, preciso correr, hoje vai ser um dia daqueles. Tenho reunião à tarde com um grupo de artistas que tem propostas para a área da cultura. Queremos passar a ideia de que o deputado também apoia a cultura, que não é só o grande defensor da segurança do cidadão de bem. Vamos acrescentar um plus à imagem dele de Inimigo Nº 1 dos bandidos. Mas o homem vai fácil pro quarto mandato, pode acreditar.
A pesquisa mostrou que o nosso eleitor gostou muito quando o deputado puxou o revólver, no meio do trânsito, e matou o assaltante que abordava uma senhora num carro parado no farol.
Tiro na cabeça. Preciso. Feito um atirador de elite.
[in “Como ser ninguém na cidade grande”, contos, Penalux, 2018]