Eis o corpo, escravo do fim:
― mórbida entrega tatuada no corpo alvo,
deitado no mármore frio à espera da autópsia.
Rara melancolia…
o corpo como um condenado que se repete
todos os dias na dor que já não sente,
na esperança que já não tem,
na falta da fé num Deus em que já não crê;
tão habituado à ideia da forca, do cadafalso,
da cadeira eléctrica ― que mais faz ser hoje,
ou amanhã? Interroga-se assim nessa ausência
de entrega muda e de olhos fechados.
Vê nos olhares dos outros
beleza extrema e consolação ― perde-se
neste olhar alucinado e diz:
“sou o que vagueia
por lugares sem poiso e sem regresso;
lavro da vida melodias arrebatadas
e sombras onde me elogia o livro das viagens
em que levito sem destino
entre cantatas de ilusão mórbida.”
Abriga-se este corpo
à esquina da perdição como o profeta
das capelas ilusórias, o pregador de paraísos
mal parados.
Nas mãos cerradas a esperança bem guardada
entre os dedos apertados para comprar a salvação:
― mil anjos metidos na seringa,
depois o navegar à bolina e sem bússolas
no destino segredado no vapor que se evola
do apertado gargalo da garrafa.