Cultura

Inteligência artificial não é inteligente, e não é artificial | Cristian Barbarosie

Quem somos nós ? O que significa ser humano ? Ser inteligente ? São perguntas retóricas, claro. Nunca saberemos responder.

 

Mas vale a pena reflectir.

 

Tudo começou com a linguagem, com o verbo. Quando o ser humano começou a formular os seus pensamentos e emoções em palavras, a consciência humana mudou. Tornou-se transmissível. A consciência quebrou as barreiras do nosso corpo, da nossa pele, do nosso crânio, expandiu-se fora do corpo físico. De repente o ser humano já não estava confinado nos limites do corpo humano. De repente já eramos capazes de penetrar na mente de outros humanos, seja para incutir ideias seja para recebê-las.

 

Depois veio a escrita. Não só a consciência humana era transmissível, penetrava outros humanos, como agora ficava registada. Congelada no tempo. Seja por alguns dias ou semanas ou meses, em papel ou papiro, seja por séculos ou milénios, em barro cozido ou pedra esculpida. A consciência humana, a nossa inteligência, continuava viva muito depois da nossa morte física. E isso agradou a muitos.

 

Mais recentemente, chegou o Sr. Gutenberg que inventou uma máquina capaz de escrever o mesmo texto centenas ou milhares de vezes, sem se cansar e sem se enganar, com mais precisão do que qualquer escriba. A inteligência humana, que já circulava de mão em mão, passou a ser reproduzida em quantidade nunca antes vista, beneficiando quem ansiava por assimilá-la e também quem pretendia dar-se a conhecer. E isso agradou a muitos.

 

A pedra deixou de ser tão interessante para guardar informação. A pedra é pesada e é difícil escrever nela. Um livro em papel pode ser segurado na mão, no bolso até. Os jornais e livros proliferaram, multiplicaram-se, diversificaram-se. A inteligência humana já não estava apenas dentro dos nossos crânios. Estava armazenada em enormes bibliotecas, das quais a humanidade orgulhava-se, e com razão.

 

Há poucas décadas, os textos deixaram de estar em gravados em papel. O papel amarelece com o tempo, a humidade ataca-o, os bichos comem-no, os incêndios consomem-no. Os humanos inventaram outros suportes, discos brilhantes ou pequenos isqueiros USB, para guardar cópias de si próprios, dos seus pensamentos, das suas emoções. Imunes à humidade e aos bichos, leves e com capacidade de armazenamento que aumenta de ano para ano. Podemos segurar na palma da mão o equivalente à biblioteca de Alexandria. E isso agradou a muitos.

 

Surgiu a internet, e a mudança foi tremenda. Se quisermos enviar o conteúdo da bilbioteca de Alexandria a um amigo, já nem sequer precisamos de pôr um envelope com um CD no correio. Já não é preciso suporte. Basta enviar um e-mail. Mais ainda: podemos colocar uma cópia dum pedaço de quem somos, do que pensamos, do que sentimos, numa página web e qualquer pessoa pode ir lá buscá-lo, copiá-lo, assimilá-lo. Qualquer pessoa em qualquer lado do mundo. Nem precisa de nos conhecer, muito menos de nos pedir licença. E isso agradou a muitos.

 

A consciência humana colectiva mudou-se dos edifícios frios das bibliotecas para a rede global, um lugar invisível mas omnipresente. O conteúdo em informação já era enorme depois de Gutenberg, mas agora passou a ser tão fácil produzir informação, enviar para o éter pedaços de nós próprios, que a internet tornou-se gigantesca. A navegação nessa rede global tornou-se penosa. Não tardou muito até aparecerem motores de busca, pequenos robots imateriais que, dia e noite, vasculham a internet e guardam registos do que encontram. Anotam palavras e compilam listas intermináveis parecidas com uma lista telefónica : esta palavra aparece nestes documentos, esta expressão aparece nestes artigos. São extremamente úteis, sem eles procurar uma ideia na internet seria como procurar um grão de areia no fundo dum oceano escuro e revolto.

 

Reparem, esses pequenos robots já têm uma vida própria e uma inteligência rudimentar. Reconhecem palavras e expressões, guardam tabelas e respondem aos nossos pedidos de ajuda.

 

Aquilo que hoje em dia é chamado “inteligência artificial” não é mais do que uma versão ampliada e melhorada desses pequenos robots imateriais que são os motores de busca. A única diferença é que aprenderam não só a encontrar e catalogar palavras, mas a combinar palavras seguidas duma maneira que seja parecida àquilo que eles encontraram em milhões de documentos na rede global. Quando fazemos um pedido, já não devolvem uma lista de endereços web, mas combinam pedaços de frases que encontraram nesses documentos. Parecem falar connosco, e parecem compreender a nossa linguagem natural.

 

São eles inteligentes ? Pior pergunta : serão eles cientes de si próprios ? Terão consciência ?

 

Nós não sabemos definir a consciência, por isso nunca será possível responder à última das perguntas acima. Dizemos que um humano é consciente por que nós consideramo-nos conscientes. Mas será um cão consciente ? Aqui as opiniões já serão menos unánimes. Será uma alforreca consciente ? Muitos dirão que não. Será uma alface consciente ? Poucos responderão que sim. No fundo, talvez a consciência seja uma qualidade gradual, incremental.

 

Quanto à inteligência, eu proponho a seguinte analogia. Imaginem alguém que consegue ler quantidades astronómicas de informação, e que consegue lembrar-se rapidamente de qualquer coisa que leu. Se conversarmos com esse alguém, seja qual for o assunto, ele poderá dar-nos a sensação que conhece tudo em profundidade, simplesmente por que, cada vez que lhe fazemos uma pergunta, ele compara a nossa pergunta com pedaços dos textos que leu e devolve a resposta mais parecida com aquilo que encontrou. Pode parecer inteligente, mas é apenas alguém com memória astronómica e alguma capacidade linguística. Não é um exemplo de inteligência. É apenas um espelho da inteligência humana colectiva, guardada sob forma de textos, imagens e vídeos nesta biblioteca à escala mundial que é a internet. Por isso, nem sequer é completamente artificial. É artificial no sentido que é um pequeno robot (um software) mas os sinais de inteligência que exibe são meros reflexos da inteligência humana distribuída e armazenada na net. É um pó, concentrado e distilado, da nossa própria inteligência.

 

Cristian Barbarosie

Fotografia de Cristian Barbarosie

 

Cristian Barbarosie nasceu em 1972 na Roménia. Interessou-se desde muito cedo pelas ciências exactas. Começou os estudos na Faculdade de Matemática em Bucareste. Em 1994 mudou-se para Portugal. Acabou os estudos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde ensina presentemente. Interessa-se pela sustentabilidade, eficiência energética e espiritualidade. Mail: cristian.barbarosie@gmail.com




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