Temos a linguagem instrumental, oral e escrita, utilizada no dia-a-dia para encaminhar questões práticas ou atuar em situações muito objetivas e regidas por regras e convenções, como são a correspondência comercial/oficial, as entrevistas para seleção de emprego, os relacionamentos profissionais entre colegas ou com o público, os relatórios etc. Há também as linguagens próprias da ciência, da filosofia e da religião.
Mas existe uma linguagem distinta dessas. Trata-se da linguagem literária, utilizada pelos autores de romances, contos, novelas, poemas, roteiros de filmes e vídeos e textos de histórias em quadrinhos. Aqui estamos no campo da expressão artística, que não está amarrada às exigências da linguagem instrumental. Os códigos são outros.
Além da literatura, que utiliza a palavra, as linguagens artísticas incluem a música, as artes plásticas, as artes cênicas, as artes visuais etc. Existem elementos comuns a todas as linguagens artísticas.Há diferenças entre elas e no interior de cada uma.
Vamos fazer uma rápida passagem pela linguagem poética, para marcar a diferença entre ela e a linguagem utilitária.
Imaginem as três cenas seguintes: um bonde está parado na rua, sobre os trilhos; o vento sopra forte sobre a fumaça preta que sai da chaminé de uma fábrica; uma rua está escura e, num determinado momento, o lampião que a ilumina é aceso. Isto são simples descrições. Mas vejam como a coisa é construída sob a forma de poema, pelo poeta russo Wladimir Maiakóviski.
“O mágico arranca
da goela do bonde os trilhos”
“O vento farpado
arranca da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada
O lampião calvo
despe voluptuosamente
da rua uma meia preta.”
O poeta representou o bonde e os trilhos com a imagem do mágico de circo tirando o coelho da cartola. Farpou o vento. Imaginou a rua escura como uma provocante perna de mulher em meia preta. No acender da luz eliminando a escuridão, o lampião se masculinizou e despiu sensualmente a meia da rua-mulher.
Neste poema, Maiacóviski dá um belo exemplo de como a linguagem poética não está amarrada à descrição dos fatos. Pelo contrário. Ela utiliza os dados da realidade como materiais para as viagens, construções e transfigurações que faz dentro do seu campo, utilizando os signos poéticos.
Em lugar da escrita instrumental, objetiva e bem comportada, o poeta coloca a criatividade em primeiro plano e, se necessário, transgride as regras e as limitações ditadas pela gramática, as convenções, os preconceitos político-ideológicos e linguísticos, a opinião pública, a moralidade, a autoridade e os jogos de interesses.
O poeta não segue uma pauta exterior, um esquema restrito como o que caracteriza a linguagem instrumental e puramente comunicativa. Ele trabalha a palavra antenada com o mundo interior, a vida social e o cosmos, abrindo a sensibilidade para idéias, associações de palavras, pensamentos, sensações, sentimentos, lembranças, antevisões, harmonias e contrastes, encantos e espantos, ritmos, sonoridades, intuições, vibrações. A partir daí ele constrói o seu texto e o seu diferencial. Esta é a substância da chamada liberdade poética.
Marcelo Mário de Melo é jornalista, escritor e ex-preso político do Brasil. Nasceu em Caruaru, no interior do estado de Pernambuco, e veio para o Recife em aos nove anos. Escreve poemas, histórias infantis, minicontos, textos de humor e teatro e notas críticas.
Vê a elaboração poética como o olhar que mergulha e voa, o espirarco-íris de portas abertas e andantes, sintetizando o pensentir humano nos mergulhos introspectivos, nas interações sociais e nas viagens cósmicas.
Tem diversos livros publicados, de literatura e jornalismo, sendo o último deles o Literavida Historias e Casos.