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Idiot savant | Carlos Eduardo Matos

Ao chegar em São Paulo, aos 23 anos, José Augusto ganhou o apelido de “pavimentador”.

 

Não pegou, claro. Zé Augusto ou Zé são as designações obrigatórias de todo José Augusto que se preze. Mas o importante é que o ensaio de apelido não o abalou, não o fez se autocriticar, examinar com olhos julgadores seu comportamento, nada disso; seguiu em frente, fazendo novos amigos e perdendo outros com igual rapidez, devido a suas pavimentadas. Pelo menos compreendeu que o termo era uma referência à sua falta de sensibilidade, ou antes, à indiferença pelas dores alheias. Isso, quando não eram explicitadas; se fossem, comovia-se, tentava ajudar, mostrava-se solidário. Afinal, era uma boa pessoa; apenas, parecia incapaz de apreender sentimentos, ou mesmo situações, que não fossem declaradas. Vivia pela palavra, em função da palavra. Em raros momentos de autoconsciência, pensava na obra de Matisse, Ceci n’est pas une pipe, dava um sorriso, e admitia: “Se não tivesse essa frase, eu não ia achar que era um cachimbo, não ia achar nada, ia passar batido”.

 

Vocabulocentrado, enveredou pelo jornalismo e se deu bem, gostava de brincar com palavras, de organizá-las, para expressar situações complexas. E simplesmente não lhe passou pela cabeça que um pavimentador de carteirinha jamais teria essa sensibilidade. Vivia num nicho jornalístico palavroso, onde as coisas eram ditas, de modo que mais ou menos sabia como reagir, o que se esperava dele. E ali ficava, feliz como um pinto no lixo.

 

O tempo passou, Zé Augusto aposentou-se, e desandou a escrever contos. Ele, que jamais escrevera uma linha sem ser pago, que dizia sempre, brincando, não ter escrito a tese de doutorado – fora inscrito para um doutorado, na França, milênios atrás – “por não ter combinado o preço”, passou a escrever por prazer. Com isso, as emoções em seu peito ganharam um canal de escoamento. Nos textos, vieram à tona suas deficiências de sensibilidade. Em um conto, por exemplo, ele faz o personagem (ele mesmo, naturalmente) admitir que “era um homem de sentimentos simples, por vezes superficiais. Isso (…) levava-o a não perceber bem emoções complexas que se manifestavam debaixo de seu nariz. Com as mulheres, então, era uma calamidade. Se ele fosse ao cinema com uma moça, e ela levasse a mão dele ao seio e murmurasse ‘Segura aqui pra mim’, ele seria capaz de perguntar ‘Por quê? Você vai aonde?’

 

Se, ao falar, ele era simplificador e por vezes brusco, quando escrevia era outra coisa. Talvez porque isso o obrigasse a pensar duas vezes, a reler, a corrigir, a editar – não por acaso, trabalhara a vida inteira no ramo editorial e, depois de aposentado, escrevia contos”.

 

Só que, por trás de seus textos, não estava tanto a necessidade de expressar emoções mais ou menos complexas quanto a de prosseguir com as brincadeiras com as palavras. Carlos Drummond de Andrade escreveu, “Lutar com palavras é a coisa mais vã”; José Augusto de Almeida parafraseou, “Brincar com palavras é coisa louçã”. Era isso, escrever, para ele, era algo divertido, até belo. 

 

Só que não dá para andar com um laptop a tiracolo para redigir cada frase, expressar nuances de emoção e de significado, encontrar le mot juste, a palavra mais adequada, a cada resposta de uma conversação. O Zé Augusto contista percebeu que o pavimentador continuava por ali, que nem um encosto, atropelando os sentimentos alheios, quando percebeu (aleluia!!!) que lidava cada vez pior com a velhice, a sua e, em especial, a dos amigos. A menos que dissessem:

 

– Porra, meu, tô ferrado, sem grana, fiquei doente, passei uma semana na cama, achei que ia morrer…

 

Ele enviava-lhes contos e implorava-lhes por curtidas.

 

E então ela rompeu com ele. Ela, um eterno amor, a inspiradora de um romance que escreveu, apaixonado, sobre o reencontro dos dois na velhice; ela, um dos poucos remanescentes de sua juventude, que a grande maioria dos amigos ou morrera ou fora arrastada pelo destino para plagas desconhecidas. Rompeu por sua insensibilidade, pois sabia que ela estava doente mas nem se preocupou em perguntar pela seriedade da coisa. Foi como se o contista pavimentador pensasse, “se está viva, pode ler e curtir meus contos”. Foi uma pavimentada a mais. Uma demais.

 

Quando a ficha finalmente caiu, e percebeu que ela iria cortá-lo de sua vida, Zé Augusto pensou em não reagir. Haviam passado por uma série de rupturas anteriores, mas os sentimentos compartilhados e um sem-número de cumplicidades sempre haviam levado a uma reaproximação. (O conto cuja passagem foi citada acima fora justamente escrito em uma dessas rupturas.) Mas, na última conversa que tiveram, surgiu uma ideia nova: talvez sua incapacidade de perceber e respeitar sentimentos não ostensivamente declarados fosse não um traço de comportamento mas algo mais profundo, uma manifestação de autismo. E talvez sua peritagem (magia é forte demais) com as palavras fizesse dele um idiot savant, excelente em um pedacinho bem limitado do real. 

 

Mas velhos hábitos custam a morrer, e Zé Augusto escreveu este conto. Que foi imediatamente enviado a ela. Não para reatar, os dois achavam melhor não; como um último boi de reisado, depois de haver-lhe escrito dezenas de contos e um romance de amor. Mais um boizinho, a derradeira vênia, oferecido por um pavimentador involuntário, idiot savant da pesada.

 

Fotografia de Carlos Eduardo Matos

 

Meu nome é Carlos Eduardo (Cadu) Matos. Nasci em 1946, em Niterói, cidadezinha diante do Rio de Janeiro – uma Almada da baía de Guanabara. Formei-me em Direito em 1968 mas jamais advoguei. Dei aulas de Sociologia na Fundação Getúlio Vargas- SP e, antes disso, em 1975, na Escola Bento de Jesus Caraça, em Évora. Sempre exerci o ofício de escritor. Desde 1969 trabalhei como editor, redator, tradutor, preparador de texto e revisor para editoras de fascículos, revistas e livros didáticos e não didáticos. Contudo, apenas em 2018 escrevi meu primeiro texto pessoal, não encomendado por uma empresa. E não parei mais. Lancei quatro e-books pela Amazon: Shoshana – publicado na íntegra em quatro edições sucessivas da InComunidade – e os livros de contos Lili dos dedinhosA outra e Rebeldes.

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