Cultura

Gíria alimentar | José Augusto Carvalho

O homem, assim como a maioria dos animais, tem dois instintos básicos: o da conservação da espécie e o da conservação do indivíduo. O primeiro, que é o instinto sexual, leva- a acasalar-se, a constituir família, a ter prole. O segundo leva-o a procurar alimento para manter-se vivo.

No primeiro caso, a satisfação do instinto depende só dele. Mas o segundo depende também do governo, da previdência social, da economia, do emprego… Por isso, a preocupação com a própria sobrevivência é algo que não depende apenas do interessado. Como o Brasil é um país ainda subdesenvolvido (ou, como querem os otimistas, em vias de desenvolvimento), o povo é faminto. Se, na maioria dos países, a gíria, que é a expressão da alma e da criatividade do povo, é basicamente sexual, é apenas na língua portuguesa do Brasil, que eu saiba, que a gíria também se compõe, ao lado das expressões relacionadas ao sexo, de muitos termos associados à alimentação, como: estar nos seus azeites (estar de mau humor), dar um bolo (faltar a um compromisso), ser rei da cocada preta (achar-se o tal), ser canja (ser coisa fácil), chá de sumiço, tudo acaba em pizza (sem punição), aquilo é uma marmelada (trapaça), ser farinha do mesmo saco (ser da mesma laia), pão-pão, queijo-queijo (sem rodeios), comer o pão que o diabo amassou (passar por dificuldades), tem caroço embaixo desse angu, pôr azeitona na minha empada, ser sopa no mel (ser fácil),  estar por cima da carne seca (estar em posição elevada), dar um caldo (enfiar a cabeça de alguém na água), pão (homem bonito), fazer biscoito para viagem (estar muito doente, reminiscência das viagens marítimas em que o biscoito era alimento básico), engolir frango (goleiro que não impede um gol, por descuido, no jogo de futebol), prato cheio (fato que provoca zombaria), pôr em pratos limpos (esclarecer), etc. Não é à toa que o verbo comer e o adjetivo gostoso associam a gíria sexual à da prática alimentar.

Muitos ditos populares retratam fases históricas. Assim, para lembrar os tempos das grandes navegações, temos expressões como: remar contra a maré, ir de vento em popa, estar no mesmo barco, embarcar em canoa furada, abordar alguém, deixar o barco correr, ficar a ver navios…

Da mesma forma, a gíria baseada em produtos do campo também mostra o caráter tradicionalmente campesino do brasileiro, já que o Brasil foi durante muito tempo um país essencialmente agrícola: plantar batatas (parar de chatear), dar uma banana (expressão vulgar que designa um gesto de origem portuguesa, com conotação sexual), ter um pepino nas mãos (ter problemas), um abacaxi (um problema difícil de resolver), plantar bananeira (ficar de ponta-cabeça), xuxu, uva, doce de coco (designativos de mulher bonita), favas contadas (algo inevitável), cana (situação difícil de suportar, cadeia), fruta (homossexual passivo), chorar pitanga (fazer choradeira) misturar alhos com bugalhos (misturar ou confundir coisas), etc.

A expressão “No frigir dos ovos” é parte  da expressão maior “No frigir dos ovos é que se vê a manteiga”, significando: “quando se vier ao feito é que se verá o que sobra”, segundo informa Antenor Nascentes (Tesouro da fraseologia brasileira. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, s.v.Ovo).

Há uma expressão que tem uma história bem recente. No Nordeste, meninos ruivos (da cor da laranja) de olhos claros, diziam-se descendentes de holandeses, ainda que o não fossem, e eram chamados de “laranjos”. Assim, a palavra laranja passou a designar alguém que se passa por outro, ou que lhe ocupa o lugar de maneira mentirosa ou fraudulenta.

Como se vê, a gíria nos tanto quanto  a própria vida…

 

José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de várias obras sobre língua portuguesa, entre as quais: Gramática Superior da Língua Portuguesa, Estudos sobre o Pronome, Pequeno Manual de Pontuação, Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa, todas pela Thesaurus, de Brasília.

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