Cultura

Festa | Daniela Pace Devisate

Foto de CHUTTERSNAP na Unsplash

FESTA

 

  1. O apartamento já estava com aquela cara de fim de feira, o aspecto que costumam ter as festas, perto do amanhecer. Garrafas vazias, cinzeiros cheios, salgadinhos pisados pelo chão, o banheiro com traços de vômito, um casal esquecido por ali, aos beijos sobre o tapete persa. Sim, era um belo apartamento, num bairro nobre de São Paulo, amplo, com muitos livros. Um dos motivos pelos quais frequentava festas, era para conhecer por dentro os ambientes que só costumava ver por fora. Namorar as bibliotecas, adivinhando a personalidade de seus donos. Fuçar na coleção de discos, espiar furtivamente para o interior dos quartos, dar palpites mentais sobre a decoração. Nessa festa, tinha gostado do repertório, até dançado algumas músicas. Tim Maia, principalmente. Um pouco de jogo de cintura para se esquivar de  três ou quatro caras, e misturar ( suprema heresia ) vinho tinto com destilado. Milagre não ter vomitado. Declinou das ofertas de drogas, numa bela bandeja, cortesia do anfitrião, um estudante da USP metido a poeta, que uma amiga em comum tinha apresentado. Agora, só um pequeno grupo tinha se deixado ficar, sentado à mesa, na semi-penumbra da luz que inaugurava a manhã, filtrada pela pesada cortina. Os amanhecidos: um cara de cabelo meio punk, com uma jaqueta de tachas e citando um monte de pensadores, frases soltas que ele costurava como um patchwork; uma mulher de meia-idade, visivelmente chapada, de cabelos longos e loiros, que ela acariciava, como se fosse a namorada de si mesma, com olhar sonhador e perdido nas manchas do teto; o próprio dono da casa, belos olhos negros de cigano, sorrisinho irônico, cheio de auto-complacência, lendo alguns versos de sua última publicação, paga pelo pai; uma mocinha de uns 16 anos, usando uma bata hippie e muitos anéis; um cara bem mais velho, entre sessenta e setenta, aparentemente, com uma barbicha branca e olhinhos de rato, astutos e atentos aos menores movimentos; eu, vestindo a duplinha vestido preto e colar de pérolas falsas, meu uniforme das festinhas paulistanas. A conversa estava murcha, os poemas do estudante-anfitrião eram ruins, eu tentava acompanhar o pensamento do cara de topete e jaqueta, era algo sobre Nietzsche, mas daí misturava com tropicalismo (…) e arrematava com passagens do Velho Testamento. Daí, o estudante uspiano encarou o topetudo e disse que aquilo tudo era uma baboseira, que o deus do filósofo alemão era Dionisio, que todo mundo sabia disso, e etc. A garota de bata azul disse que gênio tropicalista era o Gilberto Gil, e que o melhor lugar do mundo era aqui, e agora. Todos concordaram, menos eu. Puta festa chata, como assim, melhor lugar do mundo?! Mas, não falei nada, porque não tinha a menor vontade de voltar pra casa. De repente, o velho de barba pontuda disse: Vou tirar as cartas para vocês, quem sabe enxergo o futuro e ele é melhor do que, simplesmente, agora? Ou posso prever desastres, de qualquer forma, será divertido. Dito e feito, tirou do bolso um maço e começou a embaralhar as cartas. Eu estava sentada à sua esquerda, por isso fui a primeira contemplada. Ele me olhou bem fundo, com seus olhinhos astutos e penetrantes e me mandou escolher uma carta. Puxei, do leque em suas mãos, e virei, para que todos pudessem ver a imagem. Era uma pirâmide invertida. Alguém deu um longo assobio. O barbicha falou, sem me encarar, agora:
  2. Sua vida vai ser repleta de perdas, perdas que ensinarão o valor espiritual das coisas que te acontecem. Você tem uma intuição profunda e deve usar a seu favor. Tire mais uma carta.

Puxei mais uma, era um lindo desenho de três estrelas, cada uma de uma cor. Respirei aliviada, nem sei porquê, eu não acreditava em nada daquilo. O futurólogo abriu um sorriso de dentes estragados e disse que eu seria protegida das catástrofes que estavam previstas na carta anterior. Bem, então tudo ficava do mesmo tamanho. Ele agora pedia para o dono da casa embaralhar e escolher, e eu me levantei da mesa. Dei uma volta pela sala, observando as telas na parede. Grandes, abstratas. Minimalistas, seguindo a moda da época. Em uma, o esboço de um homem, sentado numa cadeira, dentro de um grande túnel. A imagem da pirâmide invertida ainda ocupava minha mente. Distraída, quase tropecei no casal, que tinha adormecido no chão, em meio às almofadas. Sentei ( afundei ) numa imensa poltrona de couro e um diálogo mental se iniciou. Na verdade, era um filme interior e nele, a minha Angústia personificada apertava uma espécie de espartilho em mim, eu sufocava, me sentia prestes a desmaiar. Quando eu ia perder os sentidos, um anjo todo verde (asas, túnica, rosto e mãos ) me dava água, borrifava água em minha boca, e eu renascia. Abri os olhos. O sol, agora, clareava tudo, as plantas da varanda pareciam luminosas, eu distinguia os objetos perfeitamente, a beleza de um dia novo em folha aliviou o tédio de viver. Lá na sala de jantar, o jogo continuava. Me ergui do abismo da poltrona, fazendo um grande esforço. Consertei os cabelos no espelho antigo perto da porta, alisei o vestido e saí, à francesa. Sou muito sensível para despedidas, mesmo de pessoas que não sei o nome e só tenha partilhado algumas horas, durante uma noite. Desci pelo elevador, graças a Deus, vazio. Atravessei a rua, em direção ao ponto de ônibus, e vi, colado em um poste, um lambe que eu não tinha percebido na noite anterior. Cheguei mais perto: uma grande pirâmide invertida, contra um céu negro, onde brilhavam três estrelas, uma branca, uma rosa e outra azul-celeste. Embaixo do desenho, caracteres estranhos exóticos, que eu não sabia decifrar. Coincidência, eu disse, em voz alta. Mas, os pelos do meu braço se arrepiaram. Daria mil dólares para saber se a inscrição reservava sorte ou azar para o meu futuro. Mas, é lógico que eu não acreditava em nada disso, era uma boa filha do meu tempo, uma boa consumidora de conteúdos televisivos e jornais de domingo. Aliás, hoje era domingo, precisava passar na banca. Ia comprar também umas figurinhas de futebol para o meu irmãozinho. Se o dinheiro desse. Subi no ônibus e da janelinha vi o casal da festa, cara de amanhecidos, me dando tchauzinho. Na camiseta do cara, uma pirâmide, mas não invertida, na posição normal. Sem estrela nenhuma. O sol batia em cheio no meu rosto, era bom não pensar em nada. Mas, sem querer, lembrei do anjo verde e uma felicidade inexplicável me atingiu, contagiou cada célula do meu corpo, se espraiou pelo ônibus e pelo resto do dia.

 

Fotografia de Daniela Pace Devisate

 

Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo, capital, em 20 de julho de 1971. Vive atualmente em Iguape. é professora de arte, poeta e artista visual. Teve poemas publicados em diversas revistas literárias digitais, como Germina, Mallarmargens, Literatura&Fechadura, entre outras. Em 2018, participou da coletânea da antologia Voos Literários, pela editora Essencial. No mesmo ano, participou de feiras de publicação independente, onde vendia seus livros artesanais de poesia, editados por sua editora cartonera, a Verso Livre. Em 2019, lançou Haikai Tupy, edição independente com tiragem minúscula. Em 2020, participou da plaquete As luas e suas variações, organizador Cláudio Daniel; participou da antologia Simpósio dxs poetxs bêbadxs; publicou um poema na revista portuguesa T¨lön, editada por Luiza Nilo Nunes e nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro individual, Tantos Quartos lunares, pela editora Urutau. Em 2021, saiu no livro As mulheres poetas na literatura brasileira, editora Arribaçã. Lançou um livro pela editora Kotter, Véus de Alethea. O seu último livro publicado é Berço de lírios, pela Editora Cloe, 2023.

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