Cultura

O sistema de juízo coletivo – I | Clécio Branco

Foto de Cherry Laithang na Unsplash

Jesus, São Paulo e São João são, na visão de D. H. Lawrence em Deleuze, passagens necessárias para a constituição do sistema de juízo de Deus universal. Há o momento em que “foi necessário que a dívida fosse contraída com deuses”.(1) Por ser uma dívida com os deuses (esta), torna-se eterna e impagável. Não é com o judaísmo mosaico que se institui o sistema de juízo, mas, com os objetos do santuário judaico, o apóstolo Paulo constrói a teologia do sistema de juízo de Deus.

 

Se Moisés é o inventor do judaísmo, São Paulo é o inventor do cristianismo e um daqueles que geraram as condições mais elementares para que o sistema de juízo alcançasse a força que tem até hoje. Ele foi o grande intérprete e formador do conceito cristão de má consciência. É ele quem interpreta a cruz – ou a morte de Jesus na cruz, o Crucificado – como um acontecimento que diz respeito ao mais íntimo de nossa existência, a ponto de, por intermédio desse acontecimento, introduzir em nós a dívida infinita.

 

Uma psicologia de redenção da alma oprimida. Estranha combinação fazer com que o homem se exalte sob uma fraqueza. É o nascimento da interioridade que começa a ser esculpida em nossa profundidade do indivíduo psicológico, o Eu profundo. Em verdade, é a antiga altura do ideal fora do mundo que passa para o lado de dentro. É a altura antes projetada e a agora introjetada no sujeito. O sentimento de culpabilidade é a condição para o nascimento do sujeito ressentido. Sujeito assujeitado à dor e ao castigo. Sujeito culpado. O ideal das alturas, que era um ideal objetivo fora do mundo, o cristianismo introjeta como profundidade dolorosa do sujeito, fundando-o nesse processo que interioriza o significado da dor.

 

Então, o nascimento do sujeito ocidental é exatamente a introjeção de uma falsa profundidade. E por que falsa profundidade? Porque é a dor da má consciência, o sentido interior da dor, a espiritualização da dor que faz com que essa profundidade cresça e que, junto com ela, o pântano cresça. O remorso é isto: você volta a força contra si próprio.

 

O ressentimento não suporta nada que é ativo, não tem como, é da essência do ressentimento. A maior lembrança e a mais vívida memória no Ocidente cristão é a do Cristo crucificado. “Concluir-se-á imediatamente que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhuma altivez, nenhum gozo do instante presente poderiam existir sem a faculdade de esquecimento.” (2)

 

O povo de Israel é um povo de memória, os estatutos, as leis e os juízos devem ficar na memória, para serem repetidos pelos pais aos filhos: lembra-te! É o imperativo que mais se repete no Antigo Testamento. Mas a imagem de maior alcance, a marca de maior comoção, é a da cruz com seus cravos e espinhos: ela se encontra em cada tribunal, nas maiores praças do mundo, pois foi esculpida no centro do mundo.

 

Moisés trouxe o santuário inteligível para a realidade sensível. São Paulo e, depois, João de Patmos fizeram a maior das reversões: elevaram os objetos do santuário terrestre às alturas celestiais. Com o cristianismo, as ofertas do sacrifício diário foram completamente extintas. O santuário terrestre foi construído por Moisés conforme o modelo mostrado no monte que encontraria sua finalidade na cruz de Cristo: ele, segundo Paulo, é o cordeiro de Deus. Com a morte de Cristo, o ritual de sacrifícios encontra seu fim e o santuário se desloca da Terra para uma máquina abstrata e celeste. O santuário terrestre, com seus atributos, perdeu a finalidade: o modelo encontrou-se com as cópias.

 

A visão universalista de São Paulo elevaria o sistema de juízo de Deus para além das fronteiras de Israel. O céu acima de nossas cabeças não é mais o céu judaico sobre as 12 tribos eleitas, o céu de São Paulo é universal. Os compartimentos santos do santuário eram “figuras das coisas que estão no céu”. Agora, não mais o sacerdote terrestre, mas o Cristo que ascendeu aos céus, que se transformou no Sumo Sacerdote celestial, é o “ministro do santuário que é o verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o homem”.(3)

 

João, o mesmo João Evangelista, viu esse santuário celestial. Ele contemplou uma visão da Santa Cidade celestial e ali viu “sete lâmpadas de fogo” que ardiam diante do trono. Viu o anjo, “tendo um incensário de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para o pôr com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro, que está diante do trono”.(4) É o mesmo trono no qual se assenta o juízo, mas João de Patmos, como bem desconfiou Lawrence, não parece o mesmo evangelista. Aquele amável discípulo que, na Santa Ceia de Leonardo Da Vinci, se encontra quedado amavelmente para o Cristo não é mais o mesmo do Apocalipse.

 

Ele deixou para trás a máscara de discípulo amado para encarnar as vestes sacerdotais do juízo moral. O Apocalipse de João, como bem mostrou Deleuze, representa o afeto dos pobres que ficaram com sede de justiça contra o império.

 

Não existe nada mais individual do que a filosofia do Cristo, nada mais aristocrático do que o estilo de vida do jovem da Galileia. Conforme Deleuze, “o indivíduo não se opõe tanto à coletividade em si; o individual e o coletivo se opõem em cada um de nós como duas partes distintas da alma. Ora, Cristo se dirige pouco ao que há de coletivo em nós”.(5) Seu problema era, sobretudo, desfazer o sistema coletivo do sacerdócio do Antigo Testamento, do sacerdócio judaico e de seu poder, mas só para libertar a alma individual dessa ganga.(6)

 

O problema para São Paulo deveria ser o de tornar a mensagem aristocrática do homem da Galileia uma mensagem de alcance universal. Com Cristo, não havia mais sacrifícios diários. Ele mesmo expulsara do templo os vendedores de animais que serviam de sacrifício. Para a ira dos sacerdotes, entrava em relação direta com o indivíduo e perdoava-lhes os pecados. Ao morrer na cruz, o véu que separava o santo ofício do santíssimo foi rasgado de baixo para cima, sinal de abolição de todo sacrifício. Eis toda a razão do ódio da casta sacerdotal.

 

Ps. continua…

 

Notas

 

1 DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 161.

2 NIETZSCHE apud. DELEUZE, G., Nietzche e a filosofia, p. 171.

3 Bíblia (Hebreus, 9: 9, 23; 8: 2).

4 Bíblia (Apocalipse, 4:5; 8:3)

5 DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 52.

6 Idem, ibidem.

 

Fotografia de Clécio Branco

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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