Cultura

Ensaio para o fim | Lindevania Martins

 ENSAIO PARA O FIM

 

Quando Leonardo venceu a doença, saúde restabelecida, cortou os cabelos, comprou roupas novas, tatuou seis dragões nos braços e arrumou as próprias malas:

 

— Esse casamento foi um erro, Sara. Quase morri de covid, mas sobrevivi. Agora quero pegar geral. E já que você é careta e recusa um relacionamento aberto, vou embora.

 

Apesar de surpresa, a esposa concordou com o diagnóstico do marido. Olhando as duas malas pretas postas no meio da sala, ofereceu:  

 

— Vou facilitar as coisas. Para onde você quer ir? Alugou um apartamento? Quer uma carona até lá?

 

Parecendo confuso, Leonardo coçou a cabeça e falou em um tom mais baixo:

 

— As malas estão prontas, mas tenho que ir agora? Foi tudo muito rápido. Posso esperar uns três dias aqui até encontrar outro lugar para morar?

 

— Te dou três dias. Depois de dez anos juntos, o que são três dias? 

 

Sara ofereceu a Leonardo o quarto de hóspedes, mas ele rejeitou:

 

— Enquanto eu não for, vamos ficar como antes? Abraçados todas as noites?  Como se eu não fosse embora e as malas não estivessem prontas?

 

— Mas elas estão prontas, bem aqui embaixo dos meus olhos.

 

— Esse problema é fácil de resolver. 

 

Leonardo escondeu as malas atrás das cortinas brancas da sala. Sentindo-se exausta, Sara respirou fundo, retirou os sapatos e deitou no sofá. Sem dizer palavra, Leonardo ligou a tevê e deitou por trás dela, abraçando-a. A mulher perguntou:

 

— Não seria melhor você deitar em outro lugar, Léo? 

 

— Por quê?

 

— Por causa da separação. Agora você já é meu ex-marido. E já fazem dez minutos.

 

— Como, se nem fui embora? 

 

Quando a comédia acabou, Leonardo ficou em pé e desligou a tevê: 

 

— Ei, Sara! Não é só que nosso casamento tenha sido um erro e que eu precise de aventuras. Tem mais coisa.

 

— Mais o quê?

 

— Estamos em pandemia de coronavírus, mas é um saco ter que tomar banho todo dia. E ter que lavar as compras? Na minha casa nova, vou ficar sem tomar banho até ficar fedido. Vou jogar todas as compras nas bancadas da cozinha até começarem a cair no chão. E ainda tem a decoração da casa. Você decorou tudo sozinha. Agora quero colocar todas as ilustrações do Pokemon nas paredes.

 

— Como não estarei mais com você, faça bom proveito das paredes.

 

Então Leonardo se pôs em frente ao espelho e alisou o cabelo, perguntando:

 

— Não sou bonito, Sara?

 

— Sim. Nunca disse que você era feio.

 

— E por que  quer me deixar ir embora sem chorar? Sem me pedir para ficar? Sem rolar uma despedida lá na cama?

 

— Ora, Léo. Porque tenho que seguir em frente. Melhor começar agora. 

 

— Olha, Sara, não tão rápido. Porque se as coisas derem errado lá fora, se eu não for feliz como imagino que serei, quero que você me prometa uma coisa. 

 

— O quê? — Sara sentou no sofá e inclinou a cabeça.

 

— Promete me deixar voltar?

 

Nesse momento, Pipoca, o shitzu de cinco anos que vivia na casa, entrou correndo na sala. Sara fez uma cara séria e declarou:

 

—  Você vai ter que pedir isso a outra criatura.

 

— Como assim?

 

— Peça ao Pipoca – apontou o dedo para o shitzu.

 

— O quê?

 

— Se você voltar, será como amigo e vai ficar lá fora, na casinha do cachorro.

 

— O Pipoca não vai deixar, Sara. Ele é muito territorial – dizia enquanto o cão rosnava.

 

— Vocês vão ter que negociar.

 

— Droga! Isso tudo vai dar muito trabalho. Podemos fingir que esse papo de separação não aconteceu?

 

— Não – Sara concluiu e saiu da sala.

 

Leonardo franziu a testa e pela janela olhou para casinha do cachorro, grande, de madeira, situada no gramado da casa. Não era tão ruim assim. Foi então que ele se jogou ao chão e, latindo, começou a negociar seu retorno com o Pipoca.

 

Fotografia de Lindevania Martins

 

Lindevania Martins é poeta e prosadora, graduada em Direito, mestra em Cultura e Sociedade, mestranda em Direito Constitucional e defensora pública de defesa da Mulher e População LGBT+. Venceu o 6o. Prêmio CEPE Nacional de Literatura (contos, 2021). Possui seis livros publicados. Acredita no poderes mágicos da poesia e da ficção.  

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