Cultura

Três pequenos contos | Rafael Sousa Santos

a perseguição

 

Entrei e bati a porta. Pensava ainda no que sucedera essa manhã, durante a aula. Que sujeito particular o jovem Pettersson. É natural nas turmas haver um ou dois estudantes problemáticos, mas este era diferente. Tirei o casaco e pousei-o no cadeirão. Os bolsos estavam a abarrotar, como sempre, e por isso precisava mantê-lo na vertical. Durante toda a aula o jovem Pettersson simulou perversamente que estava a dormir: recostado na cadeira, com os olhos fechados e a boca aberta. Sentei-me no sofá e puxei um cigarro. Tenho de me deixar disto, pensei, não volto a comprar. Jan?, ouvi, Jan és tu? Olhei em volta. Jan? Caí em mim e percebi que não estava na minha casa. Jan? Maldição. Peguei no casaco e precipitei-me para a porta. Jan, és tu? O tom da voz era cada vez mais grave e inquieto. Jan? Saí e encostei a porta com cuidado, para não fazer barulho. No fim do corredor vi ainda de relance a mulher a sair. Meti para a caixa de escadas em passo rápido. Logo no início do curso, quando terminei a primeira aula, o jovem Pettersson levantou-se e aplaudiu ruidosamente. Todos os estudantes o olharam com estranheza. O que é isto?, disse eu, não estamos no circo. A mulher descia também as escadas. Quem é você?, gritava. Saí para o átrio do edifício. Não tinha qualquer vontade de me explicar, muito menos agora. A situação tornara-se demasiado insólita. Deixei o edifício. Talvez devesse falar com ele, pensei, talvez o conseguisse apaziguar. A semana passada encontrara-o no corredor. Boa tarde Pettersson. Boa tarde professor, retorquiu, li o livro que recomendou e percebi porque o professor diz tantas asneiras. Afinal não é só culpa sua. A mulher saiu também do edifício e seguiu na minha direção. Que diabo, ela é insistente. Acelerei o passo. Espere, gritava furiosa. Quando cheguei ao fim da rua, mudei de direção e corri a toda a velocidade. Pettersson, disse eu, esse é um autor fundamental. Já o professor Zetterling o recomendava nas suas aulas. Bem, isso explica muita coisa, respondeu ele com maldade. Quando me pareceu seguro olhei para trás e percebi com terror que a mulher me continuava a seguir. Estava muito perto e a sua expressão era medonha. Que resistência notável tem esta mulher. Ao fundo, um grupo de pessoas saía da catedral. Avancei a direito pela multidão, e finalmente pareceu-me ter deixado a mulher para trás. Durante algum tempo tentei identificar os traços da mulher entre as pessoas e nada. A correria deixara-me exausto, e resolvi passar na pastelaria para uma bebida. Não resisti e comprei tabaco. A culpa foi da mulher e desta perseguição absurda. Contaram-me que o jovem Pettersson fazia o mesmo em outros cursos. Contaram-me inclusive que o professor Olin ficara de tal forma irritado que lhe ofereceu um sopapo. Saber isto tranquilizara-me um pouco. Afinal não era só culpa minha, como diria o próprio Pettersson. Sentado na pastelaria procurava acalmar-me e desfrutar da bebida, mas continuava inquieto. A qualquer momento a mulher podia aparecer e agarrar-me pelo pescoço. Pensei então como voltaria a casa sem que nos cruzássemos. Impossível, concluí, vivemos no mesmo edifício, no mesmíssimo piso. Terei de encontrar outra casa, só assim terei sossego. No final dessa semana decidi deixar a cidade.

 

 

a sesta

 

Senhor Padre, senhor Padre. O padre Ekelund acordou em sobressalto. O que se passa? A senhora Krag deseja falar-lhe, respondeu o noviço. Ekelund levantou-se com dificuldade e endireitou as costas. Sentiu todas as suas articulações a estalar. Sorte madrasta, murmurou, o que é que ela quer? Não me disse, respondeu o noviço, apenas que precisava falar-lhe com urgência. Têm sempre urgência, disse Ekelund, ela que entre. O noviço deixou a sala e de imediato entrou a senhora Krag a esbracejar. Senhor Padre, graças a Deus, senhor Padre, ainda bem que o encontro, disse a senhora Krag. Ekelund espalhava as brasas na salamandra sem qualquer necessidade. Boa tarde senhora Krag. Senhor Padre, retomou ofegante a senhora Krag, aconteceu uma tragédia, uma tragédia senhor Padre. Já não sabia o que fazer, por isso vim. Só por isso vim senhor Padre. Não sabe o que me custa vir aqui incomodá-lo. Mas eu digo-lhe: custa-me muito senhor Padre. Ekelund aquecia as mãos inchadas junto à salamandra. É do frio seguramente. Na montanha o inverno é terrível, e eu já não vou para novo, pensava. Ainda para mais nesta maldita casa. Está a cair de velha, as madeiras estão todas podres, e faz um frio de rachar. Quando estou na cama sinto o vento gelado a passar-me no nariz. O noviço diz que é impressão minha. Tretas. No meu quarto o vento sopra como na rua. Até abana as cortinas. Estás a ver? Não admira que ande sempre com esta tosseca desgraçada. O pior são os livros, não tarda estão todos estragados. No fim do ano juro que me ponho a andar. É o que eu lhe digo senhor Padre, uma tragédia, e logo hoje, dizia a senhora Krag, parece que foi de propósito. Diga lá o que aconteceu senhora Krag. A senhora Krag calou-se então por instantes, para ganhar balanço. As luzes do altar não funcionam senhor Padre, tentei de tudo e não há forma de as ligar. Juro pelas alminhas que não há forma de as ligar. O padre Ekelund olhou-a furioso. E você veio cá para me dizer isso?, chame o Falk e vá para o diabo. Ekelund voltou a sentar-se no cadeirão e puxou a manta. Senhor Padre, isso já eu fiz. Fui eu mesma a casa do senhor Falk, e sabe como me custa caminhar com este frio. Roguei ao senhor Falk que viesse, mas ele disse que antes de sexta-feira era impossível. E eu insisti senhor Padre, pedi-lhe pela alma da minha falecida mãe, e ele repetiu apenas: impossível. Impossível, disse ele senhor Padre, impossível e afiou o bigode. Que pouco compreensivo é por vezes o senhor Falk. E logo hoje senhor Padre, logo hoje que temos o ensaio com os meninos da catequese. O que fazemos senhor Padre?, diga-me por favor, o que fazemos? Sei lá, disse Ekelund, adie o ensaio. A senhora Krag estremeceu. Não é possível tal coisa senhor Padre, o resto da semana está toda preenchida, não se lembra? Ainda no domingo falamos disso. Você até disse: esta semana está toda preenchida. Foram as suas palavras senhor Padre. Como é que não se lembra? Deus nos acuda. E os meninos que se prepararam tanto para hoje. Há mais de um mês que se estão a preparar. A pequena Eva até veio de propósito à vila, e sabe como ela mora longe. Sabe, não sabe? Mora para lá da nascente, junto aos viveiros de trutas. Já cá está, ficou à porta da igreja à minha espera. Veio pelo próprio pé com este tempo terrível. Atravessou a montanha senhor Padre, a coitadinha atravessou a montanha, e agora isto. É uma verdadeira tragédia senhor Padre, uma verdadeira tragédia. Nesse momento já o padre Ekelund dormitava no seu cadeirão.

 

 

a visita

 

Boa tarde senhor arquiteto, faça o favor de entrar. Tirei o chapéu e entrei. Quem é?, ouviu-se ao longe a voz gutural do senhor Hegeler. É o senhor arquiteto, respondeu a senhora Hegeler. Quem? O senhor Ivarson, o arquiteto. Ah, respondeu apenas o senhor Hegeler. Eu permanecia junto à porta segurando o chapéu com ambas as mãos. Sorri à senhora Hegeler. Queira perdoar-me pelo incómodo. Que tolice, não incomoda nada senhor arquiteto. É um prazer tê-lo cá. Eu e o meu marido gostamos muito de ter visitas, infelizmente são cada vez menos. Senhor arquitecto, seja muito bem-vindo a esta sua casa, ouviu-se novamente a voz longínqua e grave do senhor Hegeler. Achei que devia retribuir a cortesia, e então gritei de volta. Caro senhor Hegeler, gostaria de agradecer a si e à senhora Hegeler por me receberem. É um desejo antigo visitar esta casa, que como sabe, é o primeiro projeto do arquiteto Olsson, o meu falecido mestre. Parei para recuperar o fôlego, depois voltei a gritar. Nos últimos anos o arquiteto Olsson estava já muito debilitado, mas falava sempre desta casa e de que um dia a haveríamos de visitar juntos. Infelizmente a distância era muita, e a sua saúde já não permitia tais aventuras. Nova paragem para respirar. No entanto conservei sempre a vontade de conhecer esta casa, que era aos olhos do meu mestre… Estava a falar comigo senhor arquiteto?, ouviu-se ao longe o senhor Hegeler. Não faça caso senhor arquiteto, disse-me a senhora Hegeler, o meu marido ouve muito mal. Daqui a pouco já terá a oportunidade de o conhecer. Alice, o senhor arquiteto já saiu?, gritou o senhor Hegeler. Não, não saiu. Estava a cumprimentar-te e tu sem prestares atenção, como sempre. Senhor arquiteto, as minhas desculpas. Os cães hoje não param quietos. Não se preocupe senhor Hegeler, gritei de volta, não era nada de… Devem tê-lo ouvido. Sabe que os cães têm um ouvido apuradíssimo. Sim senhor Hegeler, ao lado do atelier também temos… E já não estão habituados a pessoas de fora, continuou o senhor Hegeler, por isso ficam muito excitados quando vem cá alguém. O que é perfeitamente compreensível. Sucede o mesmo connosco: desabituamo-nos a estar com pessoas, e parece que desaprendemos como o fazer. Não é como andar de bicicleta senhor arquiteto, realmente não é. Confesso que esperava a sua visita com alguma inquietação, sobretudo nos últimos dias. Eu sei que vai achar ridículo, mas posso dizer-lhe que mal preguei olho esta noite. Ridículo, não é verdade? É como lhe digo, é falta de hábito. E com a idade só tem piorado. Não me entenda mal senhor arquiteto, por favor, fico muito feliz que tenha vindo. Por falar nisso, fez boa viagem? Senhor arquiteto, ainda aí está?, Alice?

 

Fotografia de Rafael Sousa Santos

 

Rafael Sousa Santos (Portugal, 1991) é arquiteto, investigador e doutorando em arquitetura na Universidade do Porto. Em 2021 foi investigador visitante no Politecnico di Milano, onde colaborou na didática de dois cursos de projeto de arquitetura. Neste momento é investigador visitante e bolseiro da Fulbright no Massachusetts Institute of Technology. Tem publicado sobre tópicos como o ensino do projeto, o papel do desenho, métodos de pesquisa qualitativos, ou planeamento urbano. Em ficção, publicou o conto “Nada a fazer” na revista Arcádia, e o conto “A regra” na revista Desassossego.




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