Cultura

A VITÓRIA DO IMPERECÍVEL SOBRE O EFÊMERO: IMPRESSÕES SOBRE O ROMANCE MORTE EM V., DE REINALDO SANTOS NEVES | Caio Junqueira Maciel

Foto de Iñaki del Olmo na Unsplash

 

Para penetrar uma obra de arte, nada pior do que as palavras da crítica, que somente levam a mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou. E nada mais difícil de definir do que as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera.”

(Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta. Trad. de Geir Campos e Fernando Jorge)

 

Em 2019, conheci Reinaldo Santos Neves, fazendo-lhe visita ao seu apartamento, na Rua Ceará, em Vila Velha. Já admirava seus romances e o livro Muito soneto por nada, e conversar com ele, ir com ele aos sebos da cidade só fez crescer minha admiração. Nessa ocasião, ele me falou do seu projeto de escrever um romance seguindo pegadas da Morte em Veneza, de Thomas Mann. Ele havia publicado o colossal romance Blues for Mr. Name ou Deus está doente e quer morrer, obra distópica, bem diferente de romances de tonalidades medievais, como A longa história, A ceia dominicana, A crônica de Malemort e A folha de Hera. Livros extensos, e em Morte em V. lê-se essa preferência: “Thomas Mann acreditava piamente que, em arte, só o que seja exaustivo é que tem real valor. […] Henry James, Sinclair Lewis, Theodore Dreiser, Edith Wharton, Thomas Wolfe, John Dos Passos, criadores, todos eles, de rica literatura para ser lida por bons e pacientes leitores (até à chegada dessa invasão de bárbaros tidos como realistas.” (p.26).

 

Agora, em 2024, retorno ao apartamento da Rua Ceará. Na cabeça, a leitura ainda fresca do seu recente romance, A morte em V. Reinaldo me recebe na porta do elevador e se antecipa dizendo que não estava bem de saúde. Sua mulher, Maria Claro, já me alertara que ele fora diagnosticado com a doença de Alzheimer. A enfermidade o surpreendeu no processo da escrita desse último romance, mas ele foi corajoso, persistente, lutou até entregar o volume de quase 600 páginas para a editora Cândida, de Vitória.

 

Sim, agora a memória o traía, mas fui puxando os fios, fui entrelaçando laços, fui percebendo que seus olhos por vezes brilhavam, e até lágrimas surgiram quando ele evocou a morte da amiga, colega de faculdade, morta aos vinte anos, há cinquenta anos: essa é uma das mortes em V. A amiga aqui comparece sob nome fictício de Otávia. E, antes de mais nada, eis aí um livro rodeado de mulheres, como Protena, Glória, Helena, Paulina, Leandra, Sibila, Sally, Cristina, Ada Lúcia, entre tantas, sem falar da Narradora. É bom lembrar que nos romances anteriores do autor proliferam personagens com o nome de Catarina (e suas variantes). Aqui se explica: “Daí, portanto, que Rainer tenha dado a bom número de personagens femininas o nome do navio: Catarina: constante lembrança e homenagem dele ao pai.” (p.32). Diga-se, ainda, que ao longo do romance a memória do pai-mentor é amplamente celebrada, em contraponto com as não boas lembranças maternas – que classificou o filho de feio.

 

A narradora, não denominada, conta, ao longo de oito longos capítulos, intitulados com os dias de semana, de domingo a domingo, a vida de Rainer Maria Rainer, alter-ego Reinaldo Santos Neves. A ação do enredo gira em torno do protagonista, que sai da cidade de L. e vai participar de palestras em V., que é Vitória. Ficção e memória se confundem; o autor lança mão de cartas, diários, depoimentos de amigos, e, sobretudo, faz uma abordagem ampla dos muitos livros que leu. Sem tirar o pé do acelerador da ficção, da imaginação intensa, das reflexões sobre vida, arte, morte. E o Desejo é um sentimento que permeia a obra, repleta de sereias metafóricas – e aqui anoto a passagem sobre um dos vários filmes citados: “(Nem esqueçamos o filme O Brother Where Are Thou, dos irmãos Coen, em que surgem belas lavadeiras das águas do rio e cantam para pôr dormir os homens, mas não para destruí-los como foram as mitológicas sereias.)”.(p.40)

 

Certamente esse romance não será nenhum Best-seller: é livro para leitores que também escrevem, para gente exigente de Literatura com L maiúsculo. Daí a inflamável e constante crítica do protagonista contra a literatura norte-americana, embora seja admirador das antigas histórias de Mickey e Pato Donald. Por outro lado, há o culto a Thomas Mann, Richard Hughes (de Vendaval em Jamaica, admirado também na versão cinematográfica), William Golding (do Senhor das moscas). Dos brasileiros, há grande apreço pelo conterrâneo José Carlos de Oliveira – que veio a morrer em Vitória e comparece em vários intertextos. Campos de Carvalho – cujos títulos dos livros já são alta literatura; o memorialista Antônio Carlos Villaça, de O Nariz do Morto (“Leve e profundo e muito bem escrito: crônica da erudição nacional em tempos de lucidez que não voltam mais.”(p.114) e a obra infantil de Monteiro Lobato. E a grande poesia nacional também é reverenciada por Rainer/Reinaldo.

 

O livro é repleto de citações, mas com pouquíssimas aspas, o que faz o leitor ficar atento com as indicações dos autores nos parênteses. Como o autor é seguramente sua maior fonte, prevalecem, entre as citações, as referências ao livro As mãos do fogo: o romance graciano, que também recebeu o título de O centauro na forca. Essa obra é o principal elo a unir Reiner e Sibila, uma das mais fortes personagens femininas de Morte em V

 

 Em uma das vezes que visitei Reinaldo, ele me levou a uma casa de repouso onde conheci seu amigo francês, o artista Gilbert Chaudanne – que escreveu poética análise do romance-confesso Sueli. Reiner, ao optar por esse nome de mulher, colheu aí suas ressonâncias sonoras e semânticas: *Sueli: Seuil: Ulisses: swallowly: suddenly, Sue Lee, Heloísa, Iseul, Seuil (limiar), Swallowly: andorinhamente, Suddenly: repentinamente, aparição inesperada, epifania.” (p.182)

 

Amante do jazz, de que já escreveu um livro sobre o tema (Dois graus a leste, três graus a oeste), o olhar crítico do protagonista pode ser vista neste trecho:“É o que aconteceu com o jazz. Um tal Miles Davis, trompetista menor diante de um grande Gillespie ou de um grande Clifford Brown e outros mais, olha só, esse Davis descobriu que era mais fácil improvisar pela cartilha do jazz modal do que pela da harmonia. Ficou famoso no mundo inteiro por ser medíocre, com ajuda, é claro, da propaganda pesada.” (p.174)

 

Os textos e intertextos evidenciam que há mais vidas do que mortes nesse romance-testamento de RSN. Como se lê na p.392, “A literatura resolve literária e literalmente todas as situações: Santa Literatura dos Impossíveis!” Num romance ambientado em Vitória, a morte não sai vitoriosa.

 

fotografia de Caio Junqueira Maciel

Caio Junqueira Maciel, escritor brasileiro, mineiro de Cruzília. Mestre em Literatura Brasileira, pela UFMG, Professor, editor, autor de livros didáticos. Livros: Um estranho no Minho, O sangue que rejuvenesce o Conde Drácula, A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota, entre outros.

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