Cultura

Tal voo, qual destino | Letícia Ferro

Foto de Kenrick Mills na Unsplash

Nunca fui acometida pelo medo de voar, entretanto, vez ou outra, quando colocada à prova, não me é incomum sentir algum mal-estar, precedido por uma assombrosa sensação de vertigem. É fato que a visão nublada, no crescendo adiantado da decolagem, costuma vazar no branqueamento da paisagem, já diretamente às voltas com nuvens fiadas na monotonia, mas, nem por isso, deixa de proporcionar, para mim, maior enternecimento que o fito do horizonte do parapeito da janela ou da sacada de um prédio alto – numa finalidade sem fim. Embora a comparação da ressalva se baseie nas idiossincrasias de cada pessoa, há nela uma questão de fundo que conseguiu dar um reset em minha programação interna: a data de 20 de março de 2020 – marco temporal responsável por empestear os “deslimites” do meu mundo. Data à qual, em meu diário (que, mais uma vez, decido aqui partilhar com o leitor), destinei tão-somente um post-it grafado com uma pequena interrogação a lápis, deixando todo o resto da página em branco. “Qual é mesmo a diferença entre ‘jornal’ e ‘journal’?”, prestes a viajar, perguntaria, pelo whatsapp, à minha professora de francês. É que há momentos em que sinceramente não sei se é a ficção que imita a realidade ou o contrário… Só o que pude ter certeza, naquele instante, foi que uma simples viagem de avião poderia deixar de ser, superando qualquer princípio tautológico, uma simples viagem de avião. E que a covid-19 não era, afinal, só uma “gripezinha”, conforme fascista e estupidamente muitos o afirmaram.

 

A saída do Rio de Janeiro, onde eu (de)moro há alguns anos, com destino à minha cidade natal, era atípica para aquele mês, o que me fez (re)pensar as palavras “deslocamento” e “pertencimento” de meu glossário. Tratava-se de uma viagem calçada na rivalização da ideia pré-concebida, quer fosse ela impressão subjetivamente crispada, trauma irresoluto na análise, ou mera desordem das ideias. Dentro do não-medo (?) estavam vários medos. O medo do inimigo invisível que assolava o mundo, e que aportaria também em nosso país, consolidava-se como o maior deles, chegando até a dar de ombros para o sol a pino do Arpoador. O protagonismo desse vírus, como vimos, mobilizaria a todos nós. Mais: nos paralisaria. (E, por que não admitir?, incrivelmente, nos pioraria!)

 

Num comportamento aturdido e, a um só tempo, apurado: isso foi o que meus olhos acompanharam nos demais tripulantes neste dia que denominei “triplo vinte”. O Santos Dumont se transformara num verdadeiro campo de (des)concentração, onde pairavam o bate-cabeça, as pernas inquietas e a boca nervosa, com algumas máscaras – e as poucas avistadas, no lugar errado. O álcool-gel a tiracolo, o crachá. O final do verão carioca, temperado com gotículas da chuva que fechavam a estação – não, necessariamente, deixava “promessa devida no meu coração” – era, antes, muito sentido lá fora, até dentro do táxi, que precisou seguir de vidros abertos, em obediência aos protocolos de segurança da OMS. No aeroporto, a quentura dava lugar ao tremor glacial das mãos – divididas entre segurar a onda e todos os pertences pessoais, atentando convencê-las, ao máximo, de alguma aquietação.

 

Já na aeronave, a surpresa desagradável do assento. Primeira fila e no corredor. Detestei. Quis trocar de lugar. Não consegui. Lotação sold out. A saída restada: elaborar argumentos distrativos do desconforto gerado. “O tempo de voo nem é tão longo”. “Em já sendo noite: penso, logo durmo”… Em vão. Pensei em abrir um livro, mas não quis me atrever a pedir à senhora ao lado para acender a luz, quando…: “Você também não gostou deste assento, né? Eu particularmente achei horrível”, indagou, empática e justamente, a voz advinda do meu lado direito, quase já à meia-luz. A pergunta disparada em suspeição e, ao mesmo tempo, carregada de doçura, me deu a certeza de que ali eu encontraria algum escape. Deu-se, então, o diálogo, perdurando por todo o voo, como se amigas de longa data fôssemos. O encontro afim se estendeu até à cumplicidade transgressora de abrir o saquinho de amendoim japonês, mesmo estando fora de casa. Comer, naquele tempo, e naquelas condições, soava corajoso.

 

Conversa ia, identificação vinha, ao sabor da leitura existencial… Suas histórias me disseram muito, mas não só porque a descobria “jovem há mais tempo” (ela 76 e eu, 37), mas pela forma (adiantadamente) espelhada do enredo, personas, tempo (com)partilhados. Chamar desafio às adversidades enfrentadas, o sorriso fácil e largo de esperança que colore até as perdas mais irreparáveis, a corrente de força com “minha irmã, jornalista e combativa”, o valor da saudade “a cada passamento querido”, a sapiência de separar “a porosidade de toda comunicação” e… “Já chegou?!”, perguntara ela, surpresa, como quem parecia dublar o que eu me preparava para dizer. “Sim!! Voou, né!?! Literalmente!”, rimos as duas do trocadilho infame, porém, verdadeiro. Antes de nos despedirmos, a cereja do bolo! “Qual sua graça?”, perguntei eu, e ela disse: “Letice”, ao que eu escutei e, depressa, celebrei, como se homônimo fosse ao meu: “Letícia”. Contudo, a mínima falta ou troca das vogais não chegaria, jamais, a descumprir a laetitia (do latim: alegria, prazer, felicidade) do encontro com Letice que, mesmo, ao longe, permaneceria (me) correspondendo.

 

Fotografia de Letícia Ferro

Letícia Ferro é hesitante crítica literária. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com

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