A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda.
O passado desapareceu, do futuro nem alicerces existem.
E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera…
RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.
Houve um tempo em que alguns homens acreditaram poder, gloriosamente, transformar o mundo. Tempo de grandes esperanças e elevadas ambições que levaram a que o mundo desse um salto em frente. Foi um tempo em que esses homens ousaram procurar criar um mundo melhor, a caminho, talvez, de um mundo perfeito, e isso implicava criar uma arte maior, a caminho da obra de arte perfeita, e essa obra de arte perfeita seria a obra de arte total.
Para RICHARD WAGNER, o teatro grego foi a obra de arte total que, depois, se fragmentou em várias artes: a literatura, a música, a dança, a pintura, a escultura e a arquitetura. WAGNER ambicionou reunir todas essas artes numa só arte, a ópera e, para esse projeto, conseguiu o apoio do louco rei LUÍS II da Baviera que se materializou na magnífica ÓPERA DE BAYREUTH onde o palco assumia o lugar.
Entretanto, em 1895, nascia em França o cinema. Se o seu objetivo inicial era mostrar a realidade, rapidamente, com Georges Meliés, se transformou numa ficção com Viagem à Lua (1902) e Viagem através do Impossível (1904).
A jovem revolução bolchevique de 1917 cedo se apercebeu da importância do cinema como instrumento essencial para difundir a mensagem revolucionária num país onde a população era quase totalmente analfabeta. E é nesse contexto que, ainda em 1918, é criada, por Lev Kuleshov, a primeira escola de cinema do mundo, a Escola de Cinema de Moscovo. Dessa escola de cinema iria nascer o jovem cinema soviético, ao tempo o mais avançado e experimental do mundo.
De modo diferente do que decorria da prática dos irmãos Lumiére, o objetivo do cinema não era já retratar o mundo, mas criar uma outra realidade destinada a transformar o mundo.
Em 1923, um intelectual italiano ligado às vanguardas estéticas europeias, Ricciotto Canudo, propôs que o cinema fosse considerado a sétima arte. Indo mais além escreveu:
”Necessitamos do cinema para criar a obra de arte total, para que, desde sempre tenderam todas as artes”
E é também em 1923 que Sergei Eisenstein realiza a sua primeira obra cinematográfica, uma curta metragem de 5 minutos intitulada O Diário de Glumov onde teve como ator o que passaria a ser o seu codiretor e roteirista GRIGORI ALEXANDROV. Da colaboração de ambos e ainda com o diretor de fotografia EDUARD TISSÉ nasceria uma conceção do cinema que pretendia fazer da sétima arte de Canudo, e como este pretendia, a conjugação de todas as restantes artes, isto é, a obra de arte total que WAGNER tentara criar com a ópera.
A revolução de Outubro encontrava-se na sua juventude, e a juventude é o tempo da criação. Pouco se sabia do que haveria de ser o mundo novo, era preciso construí-lo. Fervilhavam então na Rússia de Lenin os movimentos cubistas, futuristas e construtivistas. Começavam a ser divulgados os trabalhos de Pavlov e de Freud. E foi este o caldo de cultura em que cresceu e se formou Sergei Eisenstein, nascido em 1898, era filho de um engenheiro e teve a sua formação em arquitetura. Começou por ser desenhador e caricaturista. Alistou-se no Exército Vermelho enquanto seu pai combatia no Exército Branco. Em 1920 é desmobilizado e instala-se em Moscovo, passando a viver do desenho de cenários e guarda roupa para peças de teatro, nomeadamente de Meyerhold que muito haveria de influenciar a sua conceção de cinema. Estuda as obras de Rembrandt e Leonardo da Vinci que muito irão influenciar o contraste entre o claro e o escuro e o valor do dourado na sua obra. Lê também “Uma Recordação da Infância de Leonardo da Vinci”, de Freud, outra fonte de inspiração para o seu cinema e as suas reflexões sobre a arte do cinema. Em 1922 frequenta a oficina de montagem cinematográfica de Lev Kulechov e as sessões do Kino-Pravda (Cinema-Verdade) de Dziga Vertov que começava a realizar os primeiros jornais de atualidades para o Estado Soviético e a iniciar o cinema experimentalista e construtivista. Despois da breve experiência na curta metragem de 1923, está preparado para a realização da sua primeira longa metragem, A Greve.
Com este filme se inicia a construção da monumental obra daquele que é, para muitos, o maior realizador da história do cinema, o autor da obra maior da arte cinematográfica de todos os tempos, Ivan, o Terrível.
Iremos analisar essa monumental obra, os seus fundamentos teóricos e a sua relação com o nosso tempo na segunda parte deste texto.
HENRIQUE DÓRIA
É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.