Cultura

DesConto | Luiz Eduardo de Carvalho

A vida pairou, enfim, sobre a eternidade e mirou o tempo, sem mais medo de perdê-lo. Ele, desdenhoso, continuava o mesmo: ameaçava passar e não mais voltar. A vida, aprisionada em imobilidade, já não se importava e, diante da impassibilidade do tempo, também se deteve distante das expectativas de sua própria perpetuação.

 

E mais nada aconteceu, por um longo período de final desconhecido. Eram, os dois, em mútua negação, a própria ausência da esperança. Miraram-se até que se fixasse o feitiço como alicerce da dúvida. Estão ainda encantados. Aguardam o desenlace do impasse que os ata à inércia dos dias estancados.

 

E o universo, nesse hiato de expectativa, suspendeu a respiração para antecipar um suspiro que sequer sabia se seria de algum alívio. A humanidade, pobre figurante da opressiva farsa, atônita, prisioneira da incomensurável espera, minguava à margem de sua impotência e pranteava a ausência do vigor da vida e a omissão do tempo que não mais passava.

 

Assim eram os dias. Noites. Vácuos.

 

Eram a angústia inflada pela supressão repentina de centenas de milhares de vidas que nenhuma ficção suporia. Distopia inimaginável. Os dias, as noites. Os vácuos entre ponteiros inertes.

 

Foi, no seio desse pandemônio, o contista construir a solicitada narrativa de seus dias e logo se deparou com a ausência do tempo que já não se mediria em dias, em eras ou em alguma fração que coubesse na ausência.

 

Ato contínuo, deu-se o desaparecimento dos enredos, enquanto os personagens exilavam-se, indisponíveis para quaisquer aventuras, dramas, tragédias, suspenses ou mistérios. A literatura aderia ao distanciamento, não por solidariedade humanitária, mas por impossibilidade técnica sustentada mediante a supressão de seus principais elementos constituintes que continuavam a evadir-se da cena mal definida pelo autor.

 

A constatação das perdas dos elementos narrativos não estancou: logo após o sumiço do tempo e a debandada dos personagens, o enquadramento do espaço também se espatifou sem moldura diante das retinas incrédulas do autor. A nova distância não se mediria em milhas, em metros, em meros fragmentos de um total intransponível. Ninguém estimou quão longe fica o desencontro… Ali, um pouco além do impossível, onde o sonho se estilhaça em frustração. Onde os cacos ainda cortam.

 

Cenário sem marco. Sem muro. Sem fronteira. Ninguém sabe onde começa o vazio. Ninguém sabe onde termina a jornada e, por mais que o fim esperneie como a miragem de um desejo no horizonte, com seu brado a requerer a prometida conclusão, a finitude extrapolou a linha do inalcançável!

 

E o endereço do encontro, que prometeu ser estipulado no meio termo das expectativas, exilou-se sem paradeiro. Sem encruzilhada. Sem perspectiva. Fundo infinito para as intenções mal cumpridas. 

 

A convergência excluiu-se, por fim, do paralelismo das ações concorrentes. Impossibilitou-se a síntese. As ações fizeram da distância o incomensurável equívoco das vontades desnorteadas e imersas em resignação sem consolo. Mesmo inconformado, como poderia o artista parir sem o tempo, sem o espaço, sem os personagens e sem a lógica concludente de qualquer trama? Em que exílio de artifícios poderia traduzir-se o que não havia para ser contado?

 

O real exilou-se da existência e mesmo a polivalente arte já não o alcança nesse esconderijo de clausura. Mesmo para os mais criativos, sempre aptos a fantasiar novas trajetórias da esperança em vidas de diversas concepções, assim se impuseram aqueles dias, mesmo entre as linhas da pauta literária: a vida, uma vaga suspeita, já nem tão perceptível no próprio cotidiano; o tempo, outrora a única certeza, manifestado a toda potência pela inércia da espera de então, paradoxo angustiante do fluxo da vida; a esperança, um mero presságio neutralizado pelo vazio das ausências!

 

Quem ousasse escrever um mísero conto que fosse, deveria antes vencer tais impossibilidades que, a mim, tenaz narrador, derrotaram no intento antes mesmo de eu vislumbrar um daqueles sabidos caminhos que a fantasia dispõe para driblarmos as frustrações que o destino impõe. 

 

Assim, entre lamentos, resta o anúncio de que a história que este autor lhes narraria, padeceu, asfixiada. Mesmo com o ar da vida que eu lhe proporcionava ao insuflar-lhe com dinamismo a assumida inércia, ela, em sua terrível agonia, não conseguiu absorver o sopro da criação. Morreu e engrossou as estatísticas dessa impiedosa catástrofe a qual, desde que anunciada a morte prematura deste conto, já não distingue realidade e ficção.

 

Fotografia de Luiz Eduardo de Carvalho

 

Luiz Eduardo de Carvalho foi professor, publicitário e assessor de imprensa, jornalista e gestor cultural nos âmbitos público, particular e do terceiro setor. Dedica-se exclusivamente à produção literária desde 2015, já recebeu mais de 60 prêmios literários e publicou: O Teatro Delirante, Retalhos de Sampa, Sessenta e Seis Elos, Frasebook, Xadrez, Quadrilha, Evoé, 22!, O Pirata Grilheta e os Dragões do Mar, Um Conto de Réis (e de Rainhas), Crônicas do Ofício, Curtas-metragens e Cabra Cega.

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