Política

Da política da inevitabilidade à política da catástrofe | Jorge Vicente

Segundo o historiador norte-americano Timothy Snyder, quando o Muro de Berlim foi derrubado pelas forças da História, levando ao colapso da União Soviética e de um modelo de mundo com mais de 60 anos, assistiu-se ao erro de assumir que a construção da democracia, do liberalismo e do capitalismo seriam inevitáveis no mundo desmoronado da antiga União Soviética. A ideia de que as leis do progresso são inevitáveis, de que o crescimento económico é contínuo, de que o mercado resolve todos os seus desafios, de que a História tem um fim e que se chama Democracia Perpétua levou à utopia de que a Rússia podia seguir nesse caminho. A entrada das empresas norte-americanas e europeias no mercado dos países de Leste, um maior intercâmbio cultural e económico e até mesmo a expansão da NATO podem se inscrever nessa tentativa inevitável de expandir um sistema-mundo que consideramos o melhor: o sistema-mundo ocidental. 

 


Segundo Snyder, os políticos da inevitabilidade consideram que “o futuro é apenas mais do presente, as leis do progresso são conhecidas, não há alternativas e por isso não há realmente nada que possa ser feito. Na versão capitalista americana desta história, a natureza criou o mercado, que criou a democracia, que criou a felicidade. Na versão europeia, a história criou a nação, que aprendeu com a guerra que a paz era boa, e por isso escolheu a integração e a prosperidade”. Claro que quando a democracia falha, os políticos da inevitabilidade pagam o preço dos seus erros e entregam o poder aos políticos da eternidade, que criam uma versão idílica do passado, passado esse que se perdeu (ou não) e que pode ser recuperado, num mundo com inimigos e constantemente em perigo. Trump é um exemplo claro de um político da eternidade, preocupado em tornar a América grande novamente, como se a América dos anos 50 fosse realmente uma América digna de ser mencionada nos modelos mais democráticos do mundo ocidental, uma América ainda não “conspurcada” pela luta justa dos direitos civis, pelo poder da palavra e do coração de Martin Luther King; uma América que, tal como a União Soviética, fazia ensaios nucleares no seu próprio território, que ainda se vestia do fogo queimado da pele dos negros em estados como a Louisiana e o Mississippi, etc. O mundo de Trump é esse mundo, o mundo que se sentiu traído pela Guerra da Secessão, pelas conquistas dos anos 60, etc.

 

Putin também sempre se assumiu como um político da eternidade. Snyder até afirma que uma das referências políticas de Putin já era um político da eternidade antes do tempo: Leonid Brejnev. Segundo o autor, “os cidadãos soviéticos nascidos nos anos 1960 e 1970 foram educados num culto do passado que definia o Ocidente como uma ameaça perpétua”. Putin foi criado nesse modelo e transplantou esse modelo para a sua governação, embora incorporando outras características que podem definir a política da eternidade de Putin como uma política da catástrofe e do ressentimento, mais próxima do totalitarismo do que o autoritarismo de Trump ou Erdogan, por exemplo.

 

Aliás, a veneração que Putin tem ao fascismo de Ivan Ilyin, a preponderância que o perigosíssimo Aleksandr Dugin tem no pensamento político russo contemporâneo levam a que os dirigentes russos se aproximem dessa política de morte que é a política da catástrofe. Dugin nunca escondeu o seu desejo de expandir o território russo para as zonas de influência da antiga União Soviética, não se importando com as vidas de quem vive nesses territórios e chegando ao ponto de afirmar que uma catástrofe nuclear é menos grave de que o colapso da Rússia. E nunca escondeu também a extrema necessidade da Rússia alinhar em todo o tipo de desinformação política e teorias da conspiração, influenciando e manipulando tanto políticos de extrema-direita como de extrema-esquerda. Aliás, tanto Dugin como Darya Dugina, a sua filha recentemente assassinada, eram proprietários de dois sites de notícias falsas e teorias da conspiração, que espalhavam desinformação um pouco por todo o mundo. No fundo, Putin / Dugin e um modelo expansionista que não se importa de tornar o mundo numa catástrofe permanente. 



Neste caso, falar sobre a expansão da Nato ou sobre os múltiplos problemas decorrentes de 2014 são questões que, embora possam ter pontos importantes, não são a principal questão. O monstro da eternidade russa sempre esteve lá, desejoso de um mundo imperial que possa ter vassalos e escravos, um mundo falsamente multipolar na medida em que não o é de facto. A verdadeira multipolaridade só pode funcionar sem impérios, sem súbditos nem vassalos, onde um país como o Mali possa ter tanta capacidade decisória como a França, a Alemanha ou a Rússia; onde um país como Portugal se possa reunir num verdadeiro concerto de nações tal como ainda é o espírito da Carta das Nações Unidas. Um mundo onde nem a democracia nem a liberdade nem o amor sejam inevitáveis e acabados, mas sim constantemente trabalhados, amadurecidos, dignificados para que o mundo em que desejamos viver seja um mundo realmente igual, solidário e fraterno. Um mundo em que a Assembleia Geral das Nações Unidas seja o principal motor da concórdia universal.

 

Bibliografia

 

SNYDER, Timothy – O caminho para o fim da liberdade: Rússia – Europa – América. Lisboa: Edições 70, 2019.

 

Fotografia de Jorge Vicente. Fotógrafo: Maria Olívia Santos.

Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas, participando, igualmente, nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. Tem cinco livros publicados, sendo o último cavalo que passa devagar (voltad’mar: 2019).

Contacto: jorgevicente.seacarrier@gmail.com

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