Continuação do artigo anterior…
Um devir é uma máquina de guerra nômade; entrar em devir é, ao mesmo tempo, entrar em combate. Deleuze lembra que não se deve se confundir o devir com a história.
Devir não é linear, com ponto de partida e chegada. Entrar em devir e passar por nomes da história sem se tornar a história em que os nomes aparecem.
Em verdade, devir é se des-historicizar e, ao mesmo tempo em que se encontra em meio aos acontecimentos da história, experimentar os afectos de todos os personagens da história, entrar em linhas de fuga e descodificar os nomes que se encontram sobrecodificados. Como o devir-criança em Kafka, que esbarra na “edipianização do universo”.
Kafka faz uma operação de reversão de guerrilha, aumenta o próprio pai, para fazer com que ele surja como é, “e dá-lhe uma agitação molecular em que se desenvolve um combate completamente diferente”.1
As investidas fracassadas do pequeno Hans fazem de sua prática uma política de desvantagem em relação ao adulto – são todos contra um: o desafio das experimentações de enfrentar o mundo, o pai, a mãe e o “professor”. A criança, segundo Deleuze, encontra-se mergulhada na vida pura. Em artigo de 19772, Deleuze comenta o olhar da criança dentro das definições de Imanência: uma vida… Comentários mais densos sobre a criança e seus devires vão aparecer em Crítica e clínica, em Diálogos, e, com Guattari, no Anti-Édipo e, depois, em Mil Platôs.
A questão para os autores são os devires; o caso psicanalítico serve como um meio para a apreensão do conceito. Em Kafka: para uma literatura menor e em Mil Platôs, os devires são “blocos” de infância, de animalidade ou feminilidade. São intensidades entre termos heterogêneos.
O conceito é uma prática, portanto são as trajetórias e os diagramas do mapa das crianças que estão sendo pensados. Não há um só tipo de devir;, há devires, e “o critério de seleção não pode ser senão um fim imanente: em que medida o devir, em cada caso, se quer a si mesmo?”3
Os devires (criança, mulher, animal) não se prestam a interpretação alguma, não se hão de procurar significados psicológicos nos devires; troca-se, isso sim, a interpretação de “o que isso quer dizer?” por “o que se passa?”, essa é a produção que interessa, mais do que o “sentido-significação e das distribuições sedentárias das propriedades”.4
Há uma progressão dos devires (criança, mulher, animal) para séries mais abertas (“devir-intenso”, “devir-molecular”, “devir-imperceptível”, “devir-todo-mundo”).5
Em Deleuze/Guattari, com a interpretação dos enunciados na psicanálise da criança, é possível entender melhor do que em outros tipos de análises (adultos) como os enunciados e devires podem ser esmagados e sufocados.
Em ambos os casos, do pequeno Hans e do pequeno Richard, é quase impossível produzir um enunciado ou um desejo real sem que seja rebatido para o centro de convergência da interpretação já pronta e codificada.
A criança já entra no jogo psicanalítico derrotada. Deleuze (Dialogues, 1977, e Critique et clinique, 1993) e, depois, com Guattari (Anti-Édipo, 1972, e Mille Plateaux, 1980) tomam a experiência de Hans, em que o analista escuta, retém, traduz ou fabrica a partir do que foi dito.
A produção de enunciados da criança vai aos poucos cedendo o status singular para retornar em forma de subjetividade do analista: ele funciona como uma máquina de produção de sentido segunda.
Continuaremos na próxima edição…
Notas
1 DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Kafka: pour une littérature mineure, p. 18.
2 Inicialmente com seus alunos Claire Parnet e André Scala, o artigo foi intitulado de “A interpretação dos enunciados”. Depois, o artigo aparece em parceria com Guattari (2003), em Deux regimes de fous – textes ET entretiens. Paris: Éditions de Minuit, 1975-1995.
3 ZOURABICHVILLI, F. O vocabulário de Deleuze. Tr. André Telles. Ifch-unicamp. São Paulo, 2004, p. 31.
4 Idem, ibidem.
5 Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Kafka – pour une littérature mineure, pp. 17-28; Mille Plateaux, pp. 284-380.
Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.