Cultura

Eisenstein Ou A Construção Da Esperança VI | Henrique Dória

“Então? O que se passa? Há algum problema? O que é que vos perturba? Digam-mo com toda a franqueza”, foram as palavras que Eisenstein dirigiu aos seus colegas cineastas para aos quais acabara de ser exibida a segunda parte de IVAN. Eles tinham percebido quanto o filme iria desagradar a Estaline e sua clique, a começar por Jdanov. Ficaram mudos, certamente receosos. E os seus receios foram confirmados logo que o filme foi visto por Estaline. Eisenstein foi chamado ao Kremlin para um reunião com o líder soviético juntamente com Molotov e Jdanov. Estaline disparou:

“ Estudou história?…O seu retrato da OPRICHNINA é falso…Fá-la parecer com o Ku-Klux-Klan…O seu czar mostra-se indeciso, como Hamlet…O czar Ivan era um líder sensato e, se o comparar com Luís XI…ele esmaga-o totalmente…As figuras históricas devem ser apresentadas dentro de um estilo correto”

O estilo correto era o estilo jdanovista de estátuas de mármore, sem contradições nem angústias, totalmente afastado da verdade dessa personagem complexa que foi IVAN que, em acessos de raiva louca, matara o próprio filho e, indiretamente, o neto, e fizera com que ascendesse ao trono um filho imbecil, tão imbecil como o próprio príncipe Vladimir que IVAN, no filme, conduz à morte no meio de uma farsa cruel. Mas isso não interessava a Estaline. Só lhe interessava mostrar IVAN como ele próprio queria mostrá-lo e vê-lo na sua própria imagem.

 Eisenstein, entanto, nunca quis afastar-se da realidade. Mas como escreveu ANDRÉ BAZIN sobre os dois tipos de realismo: 

“…o realismo verdadeiro, a necessidade que há de dar expressão significativa ao mundo tanto concretamente como na sua essência  a sua obra e o pseudo-realismo de uma fraude que tem por objetivo enganar os olhos (ou, neste caso, o espírito); por outras palavras, um pseudo-realismo satisfeito com aparências ilusórias.”

 Jdanov e Estaline, no entanto, não queriam compreender esta distinção e, para eles, não interessava o cinema em que se exigia do espetador um esforço de interpretação, o cinema criador de beleza só alcançável através da forma, o cinema como arte, mas um cinema facilmente apreensível por um povo russo maioritariamente analfabeto e que só conseguia entusiasmar-se com imagens simplistas da realidade que dessem desta uma imagem positiva.

O IVAN altivo e dominador da primeira parte da obra, dera lugar a um homem solitário, encurvado, cínico e com a alma cheia de fantasmas que se interrogava sobre o sentido do poder e o modo como o exercia, tudo o contrário do que Estaline queria ver nele e via em si mesmo. 

Felizmente, Eisenstein escapou ao ostracismo definitivo ou à Sibéria. Estaline deu-lhe a oportunidade de se redimir através da já planeada terceira parte de IVAN que deveria ser construída em bom estilo jdanovista, terceira parte que EISENSTEIN acabaria por não filmar pois a morte surpreendeu-o durante o trabalho, em Fevereiro de 1948.

Mas essa segunda parte de que Estaline não gostara mostrava toda a genialidade de Eisenstein. Nessa segunda parte de IVAN O TERRIVEL, mostra-nos como, nas palavras de Gilles Deleuze, “ A luz é mais forte do que a história” . E a palavra história pode aqui ser vista tanto como a narrativa da obra cinematográfica como da história do czar fundador do império russo.

Começa a segunda parte de IVAN O TERRÍVEL com a promessa do afetado rei da Polónia, com quem KurbsKy traíra o czar amigo, de lhe entregar as terras de IVAN. Porém, a cena interrompe-se com a notícia de que o czar tinha regressado ao exercício do poder em Moscovo. Ivan torna mais dura a política contra os boiardos e a igreja, tomando  parte das suas terras e aumentando o seu poder à custa da riqueza e do poder dos boiardos. O antigo boiardo Kolychev, que se tornara no monge Filipe, amigo de infância de IVAN, vem junto de IVAN exigir que termine com a política que vai contra Deus e as tradições do passado russo, isto é, contra os privilégios da igreja e dos boiardos. IVAN conta-lhe o que foi a sua infância, o envenamento da mãe e a venda da Rússia pelos boiardos aos interesses estrangeiros. Implora a amizade de Filipe e convida-o para ser o metropolita de Moscovo. O que Filipe aceita desde que lhe seja concedido interceder em qualquer sentença de condenação dos boiardos ditada por IVAN. IVAN, embora contrariado, aceita essa condição. MALYUTA, porém, convence-o de que não faltará à palavra dada a Filipe se executar a sentença antes que Filipe a possa apreciar e, assim, três boiardos da família de Filipe, os Kolichev, que conspiraram contra o czar são executados. Entretanto, com a ajuda dos oprochnina, IVAN descobre que a czarina Anastasia tinha sido envenenada pela tia Eufrosina.

Os boiardos recorrem a Filipe para pressionar IVAN a deixar de ataca-los.Na catedral, durante uma peça teatral de cunho caracteristicamente medieval em que um coro de anjos recitar as atrocidades do rei, Filipe exige a IVAN o fim das medidas de terror contra os boiardos. IVAN irá tornar-se então em O HORRENDO, como o apelidam os boiardos, e manda prender o próprio Filipe. Eufrosina e os boiardos decidem então que a única solução é assassinar IVAN e fazer czar dos boiardos o incapaz Vladimir, filho de Eufrosina, escolhendo, para isso, o noviço Pyotr. IVAN convida então Vladimir para um banquete com os oprichnina, embebeda Vladimir enquanto os oprichnina dançam e cantam em seu redor freneticamente, com Fyodor Basmanov vestido e mascarado como uma figura do teatro kabuki e o coro dos oprichnina trajando de negro e os bailarinos vestindo de vermelho e amarelo dourado.  O pobre Vladimir querendo demostrar a IVAN  que não perdeu todos os amigos porque ele é um amigo em quem pode confiar, descobre-lhe que está montada uma conspiração para o assassinar. IVAN organiza então uma mascarada coroando VLADIMIR de czar, e levando Vladimir coroado para a catedral, seguindo ele, com os oprichnina, disfarçado de monge. Pensando tratar-se de IVAN, o noviço Pyotr assassina Vladimir que seguia com os trajes de czar, acreditando assassinar IVAN.  Eufrosina surge gritando que a Rússia estava livre de um czar perverso, mas surge a seguir IVAN, disfarçado de monge, como a enorme sombra de uma sombra, pondo termo ao engano perante uma Eufrosina, que aterrada e vencida, pega no seu filho ao colo e canta a triste canção do cisne negro. O filme termina com IVAN reafirmando o desígnio de lutar pela grandeza da Rússia.

Foi na segunda parte de IVAN que Eisenstein logrou fazer do cinema a obra de arte total que outros, particularmente Wagner nas suas óperas  tinham já  tentado. Se nas obras anteriores Eisenstein tinha logrado fazer do preto e branco, com as suas imensas gradações, verdadeiras cores, é na segunda parte de Ivan  que ele aplica os ensinamentos de  Goethe sobre a cor e o seu significado, a pintura de Rembrandt e de Turner com os seus dourados contrastando com os negros, e a pintura de Georges de la Tour com o vermelho contrastante com o amarelo/dourado.

Como para Goethe, como nos ícones da ortodoxia russa o amarelo/dourado era símbolo da luz, a mais pura das cores, mas também o seu contrário já que a cor mais pura é a mais suscetível de ser conspurcada e, por isso, a mais suja. 

Por sua vez, o vermelho é associado ao sangue, à criação, a tudo o que traz a vitalidade no homem. Por isso é a cor do Partido Comunista, a cor da revolução destinada a criar um mundo novo e um homem novo.

A escultura e a arquitetura misturam-se nesta segunda parte, toda ela filmada em interiores claustrofóbicos desenhados por Eisenstein, cuja formação inicial era a de arquiteto.

O teatro, particularmente o drama shakespeareano que nos aparece em todas aquelas sequências em que IVAN, sentindo-se só, abandonado e traído pelos nobres seus antigos amigos,  implora o calor da amizade ao monge Filipe, seu amigo de infância. Mas também a representação teatral medieval orquestrada por Eufrosina e os boiardos, dentro da catedral, através da qual eles pretendiam encenar o assassinato de IVAN como a libertação do povo russo da crueldade de um tirano.

É ainda  profundamente teatral o movimento dos olhos que obrigava os atores, particularmente NIKOLAI TCHERKASOV/IVAN, um dos maiores atores da história do cinema, a um esforço de representação só alcançável através do treino intenso  ao modo de um grande ginasta.

A música de Sergei Prokoviev está presente ao longo de todo o filme não só como decoração mas como componente essencial destinada a realçar o pathos da obra, os sentimentos que a imagem fazia nascer no espetador. 

Finalmente, a dança, arte bem presente não só naquele que é um dos momentos mais altos da história do cinema, a dança dos oprichnina no banquete para o qual IVAN convidara ao incapaz príncipe VLADIMIR, onde se misturam a  vertigem e a sensualidade, mas também naqueles momentos teatrais em que IVAN implora a amizade de Filipe.

EISENSTEIN participara das vanguardas russas do início do século XX em que pontificou, no campo da fotografia, Alexandre Rodtchenko, um dos maiores fotógrafos do século XX. Rodtchenko apreciava na fotografia a análise psicológica dos fotografados, ângulos invulgares, cortes oblíquos, o lirismo plástico. E isso foi assimilado pelo diretor de fotografia Eduardo Tissé que soube explorar magistralmente a iluminação, as sombras, o foco, a forma, o plano, o ângulo, o enquadramento, com vista a desvendar o interior dos homens e fazer participar desse interior as próprias coisas filmadas.

Por tudo isto, a segunda parte de IVAN O TERRÍVEL fez do cinema não só a sétima arte mas a obra de arte total, a união feliz de todas as artes clássicas, uma obra de arte que nenhum outro autor lograria ultrapassar.

Em toda a sua obra  EISENSTEIN foi profundamente comunista. Toda a sua obra foi o seu modo de contribuir para a construção de um homem novo e de um mundo melhor que tantos acreditavam estar a ser construído com a revolução bolchevique de 1917. Mas como Mayakosvsky, como Gorky, os suicidas, como Trotzky o assassinado, EISENSTEIN assistiu ao desenrolar de uma revolução traída por ESTALINE, que acabaria com o patético Krutchev, o medíocre burocrata Brejnev e, finalmente, o liquidatário Gorbatchov. Em 1933, como homem vencido pela vida enquanto via os que lutaram pela Revolução ser destruídos por Estaline, desabafava:

“ Não quero continuar a trabalhar, não consigo…Tenho 35 anos, pareço um velho. Mais valia morrer agora. Nada me prende à vida. Amei uma coisa, acreditei nela, mas roubaram-me tudo o que estava em mim.”

Viveu, felizmente, mais quinze anos para nos legar o pouco que resta de O PRADO DE BEJINE, e ainda ALEXANDRE NEVSKY  e IVAN  O TERRÍVEL, duas obras maiores da cinematografia de todos os tempos.

EISENSTEIN, o construtivista do cinema através da técnica da montagem, tentou construir a esperança através da sua obra genial, ainda hoje inultrapassada apesar de ter nascido nos primórdios da arte cinematográfica. Talvez, um dia, a esperança que EISENSTEIN quis contruir na sua breve vida através de uma obra inovadora e monumental, coroada pela segunda parte de IVAN O TERRÍVEL, se venha a tornar realidade. 

 

Fotografia de Henrique Dória

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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