Cultura

Crianças: pequenas máquinas de guerra | Clécio Branco

Em artigo sobre as crianças, “Deleuze e os bebês1”, o autor apresenta o bebê como personagem conceitual, e vê nele a “forma mais profunda da relação de vida e pensamento”. No texto, o autor traduz o caráter de indeterminação do bebê, afirmando que “a vida (…) se encarna na figura do bebê”, uma vez que ele é inteiramente “singularidade pré-individual2”.

 

Ainda segundo o autor, pode-se afirmar que “todos os bebês se parecem, embora mostrem expressões que os atravessam inteiramente, como um sorriso ou uma careta”. Essas expressões são “a manifestação de uma vida que percorre e singulariza o bebê, sem individualizá-lo”; expressões que fazem dele algo “que ertence apenas ao sensível3”.

 

Sobre habitar este mundo de pura imanência, cabe uma questão: “Não será preciso guardar um mínimo de estratos, um mínimo de formas e de funções, um mínimo de sujeito4” para que deles pudéssemos extrair aquilo que, de algum modo, seria da ordem do acontecimento? Não devemos correr os riscos de permanecer na ideia de uma viagem psicodélica nas asas do plano de imanência.

 

Em “O que dizem as crianças5”, Deleuze aponta a libido como potência política de uma criança. Volta à questão do pequeno Hans e de outras crianças psicanalisadas (Freud (Hans), Melanie Klein (Richard) etc.). A libido impõe “trajetórias histórico-mundiais”.

 

O modo político de Deleuze/Guattari passa sempre por movimentos, aberturas, fugas, escapadas, idas para os espaços abertos, o mundo é o limite: a geografia em oposição à história, os mapas, e não os decalques, o rizoma contra a árvore, a erva daninha em meio às plantas domésticas, a grama, e não o arbusto, o animal selvagem em oposição ao animal domesticado em Édipo, o esquizofrênico no lugar do neurótico deitado no divã.

 

Dentre os exemplos, “os aborígines da Austrália unem itinerários nômades e viagens em sonho, que, juntos, compõem ‘um entremeado de percursos’, ‘num recorte do espaço e do tempo que é preciso ler como um mapa6”. Muito semelhante ao comportamento das crianças, que exploram os meios através de trajetos dinâmicos para aí construir mapas desses trajetos essenciais para a atividade psíquica.

 

A criança tem uma essência experimental desde o início. A atividade política de uma criança é a mesma já descrita, seu protocolo experimental consiste em se situar no lugar (platô) para depois explorar os espaços da vizinhança. Em oposição à política das crianças, encontram-se os pais (em nosso caso, a psicanálise), que têm o hábito de remeter a maioria dos trajetos e das linhas do mapa às figuras centradas papai-mamãe. 

 

Carlos Castañeda mostrou o quanto um “crivo” pode ser importante para o começo das experimentações, um lugar confortável que dá a perspectiva necessária do mundo que se quer explorar, mas o crivo tem a finalidade de meio.

 

Tal lugar só é útil nesse sentido; como ponto de partida, ele é para ser abandonado em função dos “trajetos essenciais para a atividade psíquica”. Essa atividade política não depende tanto de deslocamentos espaciais; depende menos do que de meios. Os deslocamentos são funções, sujeito e objeto, eles acontecem de uma identidade a outra.

 

A segmentaridade compõe uma longa linha de deslocamentos, de um espaço a outro, da casa à escola, da casa à igreja para o culto etc7. Nesse caso da segmentaridade, os espaços existem como funções primeiras, são fixos, os pais estão em primeiro lugar – são eles que definem como sentar, como dizer no momento em que estiver autorizado, independentemente dos meios em que se situam.

 

 Mas as crianças querem ocupar o meio entre as coisas, e as coisas só são importantes porque também servem como meio no meio. É o mesmo que Deleuze diz sobre a arte, a pintura ou a escultura. A arte é, antes de tudo, a arte de cartografar.

 

(…) Ela ordena caminhos, ela mesma é uma viagem. Uma escultura segue os caminhos que lhe dão um fora, só opera com curvas não fechadas que dividem e atravessam o corpo orgânico, só tem a memória do material (…). Carmen Perrin limpa blocos erráticos de verdor que os integra à submata, devolve-os à memória da geladeira que os trouxe até aqui, não para assinar-lhes a origem, mas para fazer seu deslocamento algo visível8.

 

A arte da guerra também passa por domínios da cartografia.

 

Em O Covil, Kafka distribui víveres por todos os caminhos e bifurcações dos túneis, mas é tudo uma estratégia de meios para facilitar a fuga. 

 

Nunca se sabe quando ou por onde o inimigo vai atacar. O meio é composto de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos fundamentais. No caso Hans, a rua e suas matérias, como a calçada, os ruídos dos comerciantes, os animais, como os cavalos atrelados e seus dramas (escorregar, cair, ser chicoteado).

 

O trajeto se confunde não apenas com a subjetividade daqueles que percorrem um meio enquanto ele se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade do percurso e do percorrido. Ele se confunde com seu objeto quando o próprio objeto é movimento. 

 

Os pais são um meio, a rua é um meio; um meio é aquilo que a criança percorre e no qual traça um mapa aberto à entrada de outros meios. Objetos e parentes são coordenadas de tudo aquilo que é investido pelo inconsciente. 

 

As crianças estão sempre mergulhadas no meio que percorrem. Ilusão dos pais pensar que são a figura mais importante; eles são também meios entre meios, são facilitadores de aberturas e fechamentos de novos meios. O mundo não deriva dos pais, os quais são apenas meios de entrada no mundo: posição cartográfica de Deleuze/Guattari, em oposição à posição arqueológica da psicanálise.

 

Continua…

 

Notas

 

1 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

2 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

3 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

4 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

5 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

6 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7845908244665629432

 

7 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/7248515873258954618

 

8 https://www.blogger.com/blog/post/edit/4612576836692516546/72485158

 

Fotografia de Clécio Branco

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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