Cultura

Seis poemas | Mariana Ianelli

UMA CIDADE CANTA ENQUANTO AGONIZA

 

Quando as feras montaram

Sobre o resto de velhas origens,

Eu te procurei no meio daqueles

Que primeiro haviam desistido.

Eu te quis vivo,

Transtornado, mas vivo,

E perdi minha pouca inocência

Ao descobrir em teu lugar

Uma aberração que sorria.

Uma eternidade se passava

Na expressão da nossa descrença

Na fertilidade macabra das bestas

Na hesitação da nossa paciência.

Imaginamos “já basta”

Mas ainda era preciso

Que nos misturássemos aos mortos

Que cedêssemos juntos

E nos causasse asco

Por termos assistido de frente

Ao nosso estado miserável.

Uma história de séculos parou,

Desprovida do governo dos homens

E mal ficava a lembrança

De terem abolido 

Nosso convívio com a terra

Durante os trabalhos e os cantos.

De uma franqueza que entorpece

Subiu um cheiro de coisa pestilenta

Que pegou nas nossas mãos

E na nossa cabeça já muito doente.

Nada nos distinguia do medo.

Olhei os teus braços erguidos,

Pesquisei os teus pavores nos meus

E concluí que a nossa luta era perdida.

Uma criatura monstruosa triunfava,

O tesouro da nossa história era consumido,

Nossos filhos mandados para o exílio

Lá onde a terra é proibida.

Eu, que podia resistir ainda, 

Abri a nossa cova 

No espaço entre as muralhas destruídas.

Desejei o tempo de uma manhã

Em que nenhum de nós acordaria,

Um tempo que transformasse a despedida

Na melancólica ilusão de sermos livres.

 

A NOITE RESPONDE A JÓ

 

E eu não via teu labor, tua fé cega, teu afinco?

E também o que subia até a palavra

E nela rebentava maldizendo tua vida…

Ouvi teus protestos, tua infâmia, tua cólera

Quando o abandono te assaltou até o delírio 

Vi o que te cobria de humilhações sem te matar

E que não morrer de todo era o teu suplício.

Sabia que tua alma enlouquecia de buscar

Motivos para o teu martírio, estive ali

Nos teus olhos cheios de crepúsculo,

No estupor que parecia o único amigo.

Vi teu corpo miserável se deitar no pó

E tua boca seca se fechar por sete dias.

A dor de um brilho alto se apagando 

No desamparo de um apelo incorrespondido

Reverberava outra dor muito maior:

De tudo o que é graça não percebida.

A noite te desesperava como um mar sem repouso

E eu estava ali, como se fosse nada 

Além de treva, como se fosse nada

Te sustentava como o próprio firmamento. 

Ali onde caem os melhores argumentos

E o bem e o mal ainda são gêmeos não nascidos,

Ali onde a razão alucina e a noite é mãe,

Era eu essa noite, mas os teus olhos não viam…

 

AGORA QUERO A NOVIDADE DE TUA AUSÊNCIA

 

Agora quero a novidade de tua ausência

Com uma paixão sem calor que mais aumenta

Quanto mais tento vencer a realidade.

Sou a paz em que acredito inutilmente

E ainda sou a vertigem dessa paz.

O desejo de que venhas como quem voltasse

Não dura em mim

Do mesmo modo que tua imagem

Que tua forma irresponsável de mover-se

E se despir e descansar no meu passado.

Permaneces aqui sem teu corpo

E eu deitada num lago de carpas.

E quando desapareces do meu sonho,

Também eu, predadora de tua alma, 

Vou com os mortos.

 

A MÚSICA FALA POR AQUELES QUE FICAM

 

A música fala por aqueles que ficam.

Nenhuma distância é possível

Entre a presença nítida de um corpo

E sua despedida repentina.

Para quem viaja em busca do futuro

Eu canto com a impureza do amor

Que me esgota e também me extasia

E me leva a produzir o tédio

Com meus dedos engordurados de vida.

Um ódio primitivo canta comigo

E são estas trevas que me acompanham

À dimensão de um tempo sem destino

Em que nada se perde porque nada existe.

 

SE EU FALASSE DO TEU ROSTO OBSESSIVO

 

Se eu falasse do teu rosto obsessivo

Que gerei na alucinação da minha sede

E que jamais se afastou de mim

Embora às vezes o esquecesse,

Se eu viesse a recobrar esse tormento

De tua parte na minha existência

Uma parte sem esperança e sem decência

Quase a substância pura do meu desespero,

Caso eu vencesse essa doença

E tua presença companheira retornasse

Sem desejo e sem um vestígio de sofrimento,

Eu não seria esta que pinta visagens

Exilada no interior da própria sede,

Mas seria, eu mesma, tua visagem,

A que não sabe, a que nunca soube ver,

Sem traço de loucura, o teu rosto verdadeiro.

 

ESQUECEMOS O CÉU 

 

Esquecemos o céu 

Que inspirava nosso enigma.

O que o destino elaborava

Na sua cava conspiração de ritmos

Não soubemos decifrar.

Chegamos ao extremo do caminho

Aonde ninguém vai 

Sem antes dar-se por vencido.

 

Todos os poemas são novas versões retrabalhadas (os dois primeiros, duas releituras: das Lamentações bíblicas e do Livro de Jó) de poemas anteriormente publicados no livro “Passagens” (Iluminuras, 2003), que completa 20 anos agora em 2023.

 

Fotografia de Mariana Ianelli

 

Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, Brasil, onde vive. É autora de catorze livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal Rascunho.

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