UMA CIDADE CANTA ENQUANTO AGONIZA
Quando as feras montaram
Sobre o resto de velhas origens,
Eu te procurei no meio daqueles
Que primeiro haviam desistido.
Eu te quis vivo,
Transtornado, mas vivo,
E perdi minha pouca inocência
Ao descobrir em teu lugar
Uma aberração que sorria.
Uma eternidade se passava
Na expressão da nossa descrença
Na fertilidade macabra das bestas
Na hesitação da nossa paciência.
Imaginamos “já basta”
Mas ainda era preciso
Que nos misturássemos aos mortos
Que cedêssemos juntos
E nos causasse asco
Por termos assistido de frente
Ao nosso estado miserável.
Uma história de séculos parou,
Desprovida do governo dos homens
E mal ficava a lembrança
De terem abolido
Nosso convívio com a terra
Durante os trabalhos e os cantos.
De uma franqueza que entorpece
Subiu um cheiro de coisa pestilenta
Que pegou nas nossas mãos
E na nossa cabeça já muito doente.
Nada nos distinguia do medo.
Olhei os teus braços erguidos,
Pesquisei os teus pavores nos meus
E concluí que a nossa luta era perdida.
Uma criatura monstruosa triunfava,
O tesouro da nossa história era consumido,
Nossos filhos mandados para o exílio
Lá onde a terra é proibida.
Eu, que podia resistir ainda,
Abri a nossa cova
No espaço entre as muralhas destruídas.
Desejei o tempo de uma manhã
Em que nenhum de nós acordaria,
Um tempo que transformasse a despedida
Na melancólica ilusão de sermos livres.
A NOITE RESPONDE A JÓ
E eu não via teu labor, tua fé cega, teu afinco?
E também o que subia até a palavra
E nela rebentava maldizendo tua vida…
Ouvi teus protestos, tua infâmia, tua cólera
Quando o abandono te assaltou até o delírio
Vi o que te cobria de humilhações sem te matar
E que não morrer de todo era o teu suplício.
Sabia que tua alma enlouquecia de buscar
Motivos para o teu martírio, estive ali
Nos teus olhos cheios de crepúsculo,
No estupor que parecia o único amigo.
Vi teu corpo miserável se deitar no pó
E tua boca seca se fechar por sete dias.
A dor de um brilho alto se apagando
No desamparo de um apelo incorrespondido
Reverberava outra dor muito maior:
De tudo o que é graça não percebida.
A noite te desesperava como um mar sem repouso
E eu estava ali, como se fosse nada
Além de treva, como se fosse nada
Te sustentava como o próprio firmamento.
Ali onde caem os melhores argumentos
E o bem e o mal ainda são gêmeos não nascidos,
Ali onde a razão alucina e a noite é mãe,
Era eu essa noite, mas os teus olhos não viam…
AGORA QUERO A NOVIDADE DE TUA AUSÊNCIA
Agora quero a novidade de tua ausência
Com uma paixão sem calor que mais aumenta
Quanto mais tento vencer a realidade.
Sou a paz em que acredito inutilmente
E ainda sou a vertigem dessa paz.
O desejo de que venhas como quem voltasse
Não dura em mim
Do mesmo modo que tua imagem
Que tua forma irresponsável de mover-se
E se despir e descansar no meu passado.
Permaneces aqui sem teu corpo
E eu deitada num lago de carpas.
E quando desapareces do meu sonho,
Também eu, predadora de tua alma,
Vou com os mortos.
A MÚSICA FALA POR AQUELES QUE FICAM
A música fala por aqueles que ficam.
Nenhuma distância é possível
Entre a presença nítida de um corpo
E sua despedida repentina.
Para quem viaja em busca do futuro
Eu canto com a impureza do amor
Que me esgota e também me extasia
E me leva a produzir o tédio
Com meus dedos engordurados de vida.
Um ódio primitivo canta comigo
E são estas trevas que me acompanham
À dimensão de um tempo sem destino
Em que nada se perde porque nada existe.
SE EU FALASSE DO TEU ROSTO OBSESSIVO
Se eu falasse do teu rosto obsessivo
Que gerei na alucinação da minha sede
E que jamais se afastou de mim
Embora às vezes o esquecesse,
Se eu viesse a recobrar esse tormento
De tua parte na minha existência
Uma parte sem esperança e sem decência
Quase a substância pura do meu desespero,
Caso eu vencesse essa doença
E tua presença companheira retornasse
Sem desejo e sem um vestígio de sofrimento,
Eu não seria esta que pinta visagens
Exilada no interior da própria sede,
Mas seria, eu mesma, tua visagem,
A que não sabe, a que nunca soube ver,
Sem traço de loucura, o teu rosto verdadeiro.
ESQUECEMOS O CÉU
Esquecemos o céu
Que inspirava nosso enigma.
O que o destino elaborava
Na sua cava conspiração de ritmos
Não soubemos decifrar.
Chegamos ao extremo do caminho
Aonde ninguém vai
Sem antes dar-se por vencido.
Todos os poemas são novas versões retrabalhadas (os dois primeiros, duas releituras: das Lamentações bíblicas e do Livro de Jó) de poemas anteriormente publicados no livro “Passagens” (Iluminuras, 2003), que completa 20 anos agora em 2023.
Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, Brasil, onde vive. É autora de catorze livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal Rascunho.