Cultura

Coisas que vi – Niño de Elche | Andréa Zamorano

Fotografia de Niño de Elche

Festival de Músicas do Mundo 2022

Sines, Portugal

Artista: Niño de Elche

 

No dia do seu espetáculo, fiz-me acompanhar de dois poetas polemistas: Vladímir Maiakóvski e Oswald de Andrade. Levei-os para o concerto comigo não por serem marxistas mas antes vanguardistas. Quis que ambos me acompanhassem, acreditando que o cantor se agradaria com as presenças, ainda que só existissem na minha cabeça.

Sonhei que se acaso tivesse a honra de me sentar como os meus convidados depois do show, falaríamos da antropofagia de Niño de Elche ao bebermos uma cerveja gelada na tasca mais chinfrim. De como o artista engole, deglute e nos entrega um objeto disjuntivo ao escandalizar e ao desprezar os cânones (especialmente os do flamenco). Sendo ele um exflamenco, como descrito na única palavra da sua biografia no Instagram, desarruma, transgride, provoca (e como provoca). Quiçá é um redentor ou bode expiatório da incumbência que tomou para si mesmo, precisamente por também ser ele poeta.

 

Ele é mais. É multidisciplinar. É poeta. Como Maiakóvski ou Oswald, como nunca serei. Teatralmente exibicionista, as suas criações e performances derrubam a rigidez de um gênero que, em tempos, já havia rechaçado outro grande, Paco de Lucía. Niño de Elche ressignifica o flamenco ao incorporar outras naturezas rítmicas (como o jazz, a eletrônica, o pop), outras disciplinas (o cinema, o balé, o teatro), a sua própria voz numa massa de molde artística que é mole, flexível, onde pode juntar pedaços e mais pedaços, esticá-los para onde lhe der a aspiração. Ou não. Proporcionando uma experiência estética, de valor tão íntimo, que me leva a locais que desconhecia em mim. Estranhos caminhos que me fazem querer a arte como imagino que ele queira: livre, suja e cheia de ruídos, retirada do eixo daquilo que supunha conhecer. Niño de Elche é um subversivo, como tal, um sedutor (quem sabe até anti-burguês). É a materialização sensorial de sentimentos que posso ouvir.

 

Fotografia de Niño de Elche

 

Niño de Elche nasceu Francisco Contreras Molina em Elche, Alicante, no seio de uma família proletária, originária de Granada, e cresceu à sombra das fábricas da sua cidade. Começou a cantar ainda em criança e aos dez anos venceu o seu primeiro prêmio como intérprete de flamenco. Daí vieram inúmeras participações em concursos e uma ascensão meteórica, fonte de conflitos familiares. Segundo as suas palavras, “Mi padre aspiraba a que fuera una especie de Miguel Poveda. Cante clásico, una gran voz, esta cosa.” (El País).

 

Não é possível ser-se indiferente à sua arte. O mais fácil será desgostar, de minha parte, caí de amores naquela mesma noite há dois meses. Niño de Elche se reinventa a cada apresentação, a cada álbum, em cada poema e, talvez, não seja para todos. Paradoxalmente elitista, em face ao esforço que empenha na sua própria destruição, tal com Maiakóvski ou Oswald. Não cabendo em categorias. Carrega o desprezo e a deferência, antitéticas e estéticas, é heterodoxo. E generoso se se tiver a coragem de ser livre com ele.

 

PS: Enquanto a oportunidade de o assistir ao vivo de novo não chega, vou ouvindo o seu programa semanal na Radio 3 – TVDe – eXtrañas heterodoXias.

 

Fotografia de Niño de Elche

 

Fotografia de Andréa Zamorano

Andréa Zamorano nasceu na cidade do Rio de Janeiro mas reside em Lisboa há mais tempo do que na sua cidade natal. Licenciou-se em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e frequentou o mestrado de Literatura Comparada, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 2015, lançou o seu primeiro romance, “A Casa das Rosas”, pela editora Quetzal. A obra foi vencedora do prémio Livro do Ano pela revista Time Out Lisboa e do Prémio da Lusofonia da CPLP.  No mesmo ano, o romance foi lançado no Brasil pela editora Tinta Negra. A autora colabora para diferentes revistas e mantém uma coluna Revista Blimunda, da Fundação José Saramago.

 

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