Cultura

Cinco poemas | Lorraine Ramos Assis

Queimada

 

uma semana para abrir os olhos,

doze dias para levantar da cama,

aproximadamente quinze dias para ser

tocado,

retirada do imobilismo feito em pálpebras caídas,

o minuto da iniciação

 

e quando achamos o silêncio como reduto intocado, nossas bocas

espaço das piores palavras a serem ditas,

reclamam ao sobrevivente mais próximo

o outro como ponto de encontro

 

o leite que alimenta a nossa origem preserva animais sem moradia

***

Janela

 

Quando os pés tornavam a percorrer a estéril,

solitária matéria do lacrimejante solo,

substância lenhosa da língua ao tentar pronunciar um

pedido a quem estivesse

nessa implícita angústia da fala interdita

torno a parar esses mesmos membros ao

sóbrio pensamento de ser perseguida

 

Fujo.

 

Quando se anunciou a luz do chumbo da apatia celeste

que metodicamente conferi se haviam coordenadas de minhas

lembranças

para que não pressentisse a solidão de um único corpo

despejado nos bosques de galícia

foi necessária a escuta

transcrição tal qual dodecafonia

de um som no silencioso esverdeado a que chamei

a grandeza de minha queda

 

quando a experiência

decisiva

por ter escolhido não mais correr e ser acorrentada

por representações vindas do desespero

vi uma silhueta envolta por sabatina

 

sua gravura, em tempos onde a história da humanidade

e todo seu destino estivesse chegando ao seu fim

erguia-me um olhar reclamando respostas

como se eu, em meu vestuário obscurecido

tecido em rebotalhos por gravetos, tivesse algo a dizer

 

Vertigem.

me observo como se estivesse em um filme

fora de meu corpo em uma sala gelada

acompanhada de abotoados estudantes

todos

brancos

e um cadáver

 

esses mesmos alunos confirmavam-me sobre extrair a boca

permaneci rígida, com olhar regrado

disseram sobre se divertirem ao terem cortado quase a totalidade da mandíbula

a partir de um ligeiro serrote

observava seus apetrechos e falas

diálogos ambulantes

o outro emite um comunicado:

“era um padre”

a outra complementa:

“na floresta perto do departamento”

riam no que clamavam vida e morte

a sabatina

 

igual aos ventos abandonados

sua vocação de prece também se foi

agora escutando junto a mim o instrumental

ainda a ressoar na desolação

de seres sem vida

sejam nos bosques

ou na dissecação

***

 

A parede

 

de vez em quando contemplo o fato de que você é como o guru dos

extensos discursos. apresentado como o possuidor das

eloquências ainda não adquiridas, as mulheres

se dispõem no esverdeado colchão

 

presentes recorrem a ti no fluxo, transmitido

pelas novas parteiras das semanas

a praia como memória

 

vinte e quatro horas se passaram e nada de sua 

presença. os mares, agora, repelem o vermelho

das pedras, salgando-as com as lágrimas

 

fluxo

de sua fala

um amigo

 

mentiras

 

o prostíbulo queima

nas cenas seguintes

ao meu afogamento

 

nunca mais

a droga

 

***

 

O último dia

 

encaminhar a retina por um doloroso tempo

com os dedos

encardidos

ao se enfiarem nesses próprios olhos

como se fosse a versão feminina do boneco de

Oscarino Farinas

deixando ser conduzida por movimentos

involuntários

auto imagem

a se chamar

A ventriloquia

 

o grito do útero escutado a dois km

produz o enigma aparentemente dito como

indízivel. Seu revestimento um dia espesso é no

momento igual ao caminho bifurcado das estradas

em que percorre a bicicleta

asfalto íngreme, sujo, solapado

na semelhança do que fez a mim

 

qualquer coisa é dita para que a coluna seja reerguida

qualquer coisa é dita para que os ossos continuem fortes

o desejo de não ter mais as manchas

sombras de um

self

 

é a anatomia, a estrutura desse mesmo ser sem vida

a condizer com o cinza nascido da impureza de rostos tapados por aquele

a se auto proclamar como

meu bem

 

Nunca foi.

 

animal adestrado. circense.

lacunas que não se fecham, mas no sangue recai o medo

de ser predada por uma corda tal qual

o enforcado

a carta dos esperançosos

 

disse a mim para omitir suas ações

 

feche

as

cortinas

docinho

 

vergonhosos são os atordoados pelos quais os mentores diziam defender

 

nunca me defenderam

 

não se preocupe

não direi nada

uma mesa, uma corda e dois

clandestinos

 

a colisão de uma bicicleta com o asfalto é companhia hospitalar para os

miseráveis feito você

merthiolate, agora, é direcionado

na garça a arder na própria plumagem

 

meu grito se escuta por ter sido atropelada por mais um deles

a toda mulher que ama demais 

eu digo:

o fogo caminha comigo

 

cansei de fechar as suas cortinas

***

Arquiteta

 

Para D, que sempre se isolou.

 

o assombro do sul me diz no sufoco

a única regra é não comentar sobre as regras

pois para não morrer deve-se tampar os

ouvidos,

inspirar, aspirar e

depois 

finalmente perceber que ninguém estava ali

ou aqui

 

filmando o inexplicável, as portas

que o ranger da noite concede

enquanto a saturação se desgasta, passando as

fotografias

elas se mantêm rodopiando na mente 

polvorosa e parecem

uma grande roda paranóide, 

perseguindo o bloqueio tangente ao

barulho da criança que não se cala

deteriorada

 

como suas projeções sempre lhe instruíram

não se constata a si mesmo sobre serem falhas

apenas uma

fase

daí que se atirar ao precipício é resultado de elucubrações diárias,

mas fica apenas em 

rebobinar, entortar, suturar a ferida aberta

plasmada você sem

chão

 

 

Escritora e fotógrafa, Lorraine Ramos Assis, 25 anos, foi publicada em diversas revistas, tais como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio. É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a antologia Ruínas, da editora Patuá, e a antologia LiteraturaBr. Escreve desde poesias a prosas, sejam poéticas, resenhas literárias ou ensaios. Concedeu duas entrevistas no canal “como eu escrevo”. Colabora com o portal Faziapoesia e Revista Caliban.

 

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
0
Sem certezas
0

Os comentários estão fechados.

Próximo Artigo:

0 %