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Carnaval no Céu | Luís Giffoni

Ele se fantasiava de mulher no bloco que saía nos domingos de Carnaval. Passava boa parte do ano às voltas com a confecção da roupa, experimentava-a enquanto ganhava forma, exigia os ajustes necessários em seu corpo que jamais seria admitido numa passarela. Gostava de sofisticação. No ano em que esbanjou elegância como Dona de Bordel, adquiriu a meia arrastão preta diretamente em Paris e provocou frisson numa sapataria: depois da luta para encontrar uma sandália plataforma na cor vermelha, bem berrante, número 43, desfilou com ela por toda a loja, acostumando-se ao salto alto, sob o espanto de senhoras que se entreolhavam e vendedoras que não continham o riso. Careca, cinquentão, com óculos grossos, barriga bem nutrida à base de cerveja e torresmo, calças arregaçadas, ele não se importou com as reações. O mais importante era conseguir o item que completaria a indumentária.

 

Não se fantasiava sozinho. Contava com a ajuda da mulher, companheira de décadas, sempre orgulhosa de ver o maridão despontar como a mais elegante do bloco, para tristeza de esposas que não tinham a mesma dedicação e criatividade para preparar os consortes. E ele era um cara com sorte. Da primeira lantejoula à derradeira renda, a esposa o seguia cidade afora, sem poupar as pernas. Também no Carnaval, o casal se entrosava muito bem.

 

No ano em que saiu de Bailarina Tresloucada, teve direito a peruca loura caindo até os ombros, mais saiote de filó, malha bem justa, sapatilhas com ponta, tudo tingido em rosa-choque. Ficou linda!, foi o comentário geral. Durante o desfile triunfal do bloco de homens travestidos e bêbados, quando o aplauso das ruas os fazia mandar o ego e o superego para o espaço e curtir a consagração, ele de repente caiu no asfalto e começou a dar tremeliques esquisitos. As companheiras de farra concluíram que fazia parte do script da Bailarina Tresloucada, gritaram em delírio, invejosas de não terem tido a ideia antes. A Garota de Programa, chefe do CTI de um grande hospital, mesmo tonta, diagnosticou um violento infarto, deu o alarme. A Fada Sininho e a Tanajura com Varizes, também médicos experientes, acudiram a vítima e iniciaram os primeiros socorros. O boca a boca foi muito aplaudido pelo público, que pediu bis. A Libélula Vesga, oftalmologista de renome, trouxe um jipe caolho, sem um farol e sem capota, e a Bailarina Tresloucada, desfalecida, foi levada às pressas para o hospital, sob o aplauso da multidão, encantada com o realismo da performance. O quarteto de doutoras engrossou a voz, assumiu a postura profissional e, sem tempo para tirar a fantasia, invadiu a sala de emergência do pronto-socorro, carregando a Bailarina, agora sem peruca, porém ainda maquiada, tal e qual suas salvadoras. Gargalhadas seguiram-nas por onde passaram.

 

A Bailarina Tresloucada sobreviveu ao ataque e, mesmo com marca-passo, mais comedida, continuou saindo no bloco nos anos seguintes. Numa tarde, recebeu um convite de ninguém menos que São Pedro para animar a festa no céu e se foi, serena, sereníssima.

 

Todo domingo de Carnaval fico imaginando como anda a comemoração lá em cima, de certo comandada por ela, agora auxiliada por algumas antigas e queridas colegas de bloco, especialmente convocadas pelos anjos e arcanjos para abrilhantar o desfile. Olho para o alto, um raio cor de rosa risca o espaço, o trovão imita um bumbo, relâmpagos menores soam como reco-recos, a ventania chora feito cuíca, pareço escutar risos e aplausos nas nuvens, e tenho certeza de que o paraíso ficou muito mais alegre. 

 

Fotografia de Luis Giffoni

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Luís Giffoni, brasileiro, tem vários livros publicados, entre romances, contos, ensaios, crônicas, livros de viagens e histórias para jovens. Recebeu alguns dos mais prestigiosos prêmios literários brasileiros. Há duas décadas, promove a importância da leitura no Brasil e em outros países.

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