Cultura

Aforismos no café II | Clécio Branco

Emoções

Não enterre emoções dentro de você, emoções nunca morrem. Elas retornam para nos assombrar. Emoções devem ser manejadas no campo das linguagens, artísticas, literárias, na escultura, na dança ou em artes plásticas. Seja como for, contanto que não seja em forma de sintomas e doenças da mente que humilha e deprime (C/ Freud).

Na Serra do Mar, o sabiá canta de outubro até o início de dezembro, se não estiver enganado. Nesse momento escuto o canto de um, solitário em meio a tantos outros pássaros. Como já disse em algum lugar, ele não canta para ninguém. Se essa minha afirmação for verdadeira, o sabiá, – assim como os outros pássaros – canta para si mesmo, para manter sua espécie existindo no ecossistema. O que estou dizendo pode ferir o narcisismo de muitos, pois aprendemos desde cedo que somos o centro do mundo, e tudo que existe e se move, existe para mim. Tudo indica que isso é apenas mais uma ilusão infantil de nossa espécie. Coisa que o sabiá não compactua.

 

Tranquilidade da alma

O que podemos controlar no mundo? Quase nada, diria um estoico. “Escolha não ser prejudicado – e você não se sentirá prejudicado. Não se sinta prejudicado – e você não será” (Marco Aurélio – Meditações).

 

O autor de Meditações está sugerindo o que está à mão e pode ser controlável. Escolhas que podemos fazer em relação a nós mesmos. Nessa direção se encontram os princípios da ataraxia (Ἀταραξία)ausência de inquietude, de uma mente inquieta. É uma pratica a ser desenvolvida, um treino mental de exercícios diários do como não me perder em meio ao caos das confusões da vida cotidiana. O outro princípio a ser considerado vem do termo apatheia (πάθος – pathos) significa ausência de sofrimento ou de paixão.

 

Trata-se de uma decisão pessoal, de deixar de fora de mim as paixões que tiram a minha paz e a minha serenidade, de me distanciar daquilo que não posso influenciar.

 

No belo filme, “Um dia de Fúria” (1993) onde Michel Douglas encarna o personagem William Foster, que está sob forte paixão (pathos), tomado pelos problemas, perde completamente o controle de suas emoções. Numa cena muito curiosa, onde o trânsito está completamente parado, o personagem se encontra ao volante do seu carro, com os vidros das janelas fechados, mas persiste um barulho ensurdecedor no interior do carro. Ele decide, por impulso, abandonar o carro em meio ao trânsito engarrafado. Ao abrir a porta e sair do carro, surpreendentemente, do lado de fora, está tudo calmo e silencioso. Os carros estão parados, mas não há confusão. Na ausência da ataraxia e da apatheia, todo o barulho e confusão da vida de Foster permanecem dentro dele e seguem em sua mente até o desfecho trágico do filme.

 

“Os eventos podem fazer as pessoas perderem a calma e agirem de forma imoral, mas ainda assim elas não são prejudicadas pelos eventos, mas sim por suas reações a eles” (No café c/ Marco Aurélio). 

O Poder

O Senhor “K” procura em vão, saber de seu processo. Nos corredores sombrios do tribunal, nas múltiplas salas, entra e sai de porta em porta; mas tudo que encontra são alusões à vaidade dos magistrados. 

 

Um ateliê para pintar os quadros em tamanho exagerado, um amontoado de menininhas para “servirem” ao tribunal. O tribunal da ficção em O processo se confunde com a realidade da justiça dos seus dias. O Senhor “K” se depara com a fria realidade presunçosa dos homens que deveriam se ocupar em julgar as causas do povo. Mas, muito pelo contrário, os tribunais e as casas do governo, se transformaram num amontoado burocrático, em favor da vida privada de quem tinha poder (No café c/ Kafka).

 

A Peste

Em “A peste”, o personagem Rieux acreditava que a dita peste não poderia atingir uma cidade de bons indivíduos, funcionários públicos de boa índole. O autor quer mostrar diferente, “a peste” não tem moral alguma – na verdade, ela é a-moral – pode devastar todos, homens bons e maus homens, crianças inocentes, mulheres, velhos e jovens – inclusive atinge os animais. “A Peste”, em Albert Camus, é a nossa desses dias, onde ninguém está seguro. Muito semelhante às moscas em Sartre que sobrevoam as cabeças de todos (Branco – no café).

 

Aulas

Hoje, dando uma aula sobre “efeitos da economia neoliberal” no mercado de trabalho, a precarização do trabalho, a corrosão do caráter do trabalhador, o “fim do emprego”, etc. Os alunos apáticos com seus celulares, jogando qualquer coisa, dizem de certa maneira: “não quero nem saber” (Em aula).

 

Futuro

Não é necessário esperar pelo futuro – ele virá sem que se espere – virá como monstro que desfaz todo sentido do presente. Usemos o futuro como essa arma que afronta os signos que, com esforço, tratou-se de organizar numa forma gramatical – o Bem e o Mal – ordenada em sintagmas, fonemas, morfemas, significantes e significados. Não sofram antecipadamente à monstruosidade do futuro. Deixem que ele venha e faça sua obra devastadora (No café c/ Derrida).

 

Arte

Sugestão aos alunos e alunas em férias: se for possível, pintem um quadro ao reverso das tendências, escrevam um poema pelo lado do avesso, leiam e pensem um livro louco, digam coisas que possam fazer soar o “terceiro excluído” – se as pessoas ficarem confusas com suas artes; fiquem certos de que vocês são artistas de verdade (Último dia de aula).

 

Estratégia

Fica aqui essa lição da natureza, quanto mais exposto, quanto mais se aparece e se chama atenção para si, mais problemas se atrai. Na natureza, os animais entram em camuflagens e mimetismo, para ficarem indiscerníveis e se protegerem dos predadores. Os humanos ao contrário, aparecem excessivamente, querem ser capturados por outro (Férias no café).

 

Ratos

Não se combate “ratos” na república por uma questão lógica. São eles que fazem as leis. São os mesmos “ratos” que as interpretam. São as ratazanas que escolhem suas matilhas e seus inimigos de classe para serem julgados – há “ratos” pelos corredores do Palácio. Eles têm rostos de homens, vestem-se como homens, mas são ratos disfarçados de homens (café c/ Camus).

 

Ratos

Não há “ratos” em nossa república; se houver, provavelmente veio de fora – diria, moralmente, o procurador da república (Café c/ Camus).

 

Moralidade

– Qual a razão de não julgarmos a natureza? – Pergunta um aluno em sua ingenuidade. –


– Pelo fato de a natureza nunca poder inventar uma moral sobre os homens e sobre si mesma, respondi – A moralidade é dos homens, daí serem juízes do mundo. A natureza é apenas ética – ela é em si e para si, segue seu fluxo de inocência (Café – c/Espinosa).

 

Política

Aos alunos e alunas que se interessam por ciência política: os chamados golpes republicanos – Fernando Lugo, no Paraguai; Manuel Zelaya, em Honduras e Dilma Rousseff, no Brasil – tratou-se de golpes “republicanos”, mas sem se conhecer os ideais republicanos que se baseiam na Revolução Francesa – Os três governos seguiam os passos do desenvolvimento social, distribuição de rendas e justiça para os menos favorecidos. Os três foram golpeados por seguirem a política de desenvolvimento econômico da base da pirâmide para cima. Os golpistas pensam no desenvolvimento de cima para baixo, a velha história de 500 anos, a de se fazer o bolo crescer para depois fazer a divisão. Curioso é que o bolo cresce sempre, mas nunca é dividido. (Lendo “Lava-Jato” de Paulo Moreira Leite).

 

Liberdade

Perguntei aos alunos, se eles fossem invisíveis, o que fariam? Percebi na maioria uma sensação de angústia e um certo disfarce da mesma. Revelaram estranhamento, medo, desamparo, solidão, etc. Não é isso na verdade o que mais se teme na vida? A solidão? A possibilidade de ser invisível não revelou nas crianças uma grande oportunidade de serem livres das condições limitantes. Na verdade, se perceber livre nesse nível de radicalidade, a de ficar invisível, pode ser assustador. A ideia é de uma solidão absoluta. Uma vez socializado, não se pode viver mais fora da cadeia do habitus – é o que nos põe “juntos” embora desigualmente (aula/ Pierre Bourdieu).

 

Banksy

O artista da antiguerra, ele pinta símbolos da paz em meio à guerra, desenho nos muros bombardeados, as crianças e os animais domésticos, esses símbolos da unidade. Se existe um soldado que merece uma homenagem, que deveria ser eternizado em bronze, esse seria sem dúvida o genial artista dos muros de todas a guerras – Banksy.

As palavras de ordens da mídia fazem do consumidor um idiota algumas vezes; mas todo dia e sempre, quando entre num tipo de fast food, num Burger qualquer, come uma coisa qualquer industrializada com falso sabor, falso aroma, falsas informações, falso preço barato – sente-se falsamente alimentado – e de resto, sai sorrindo com uma coroa de papelão na cabeça para informar ter sido falsamente coroado (No café c/Banksy).

Vou insistir na leitura comparada dos ratos em Banksy com a minha visão dos corruptos de meu país. Em Banksy, os ratos evoluíram comendo resto de tudo. Ratos comem lixo hospitalar, resíduos radioativos de baterias e qualquer coisa que encontram no lixo humano. A ingestão de qualquer coisa parece tornar os ratos mais imunes a quase tudo que se usa para combatê-los. Por outro lado, os “ratos” da política desenvolveram imunidade parlamentar que conta com a proteção do judiciário, da polícia, da mídia e do povo. Cego como está, não se importa de ser roubado por aqueles a quem se submetem. Nos dois casos, não têm solução fácil, não se extermina nem um nem outro (No café c/ Banksy).

 

Fotografia de Clécio Branco

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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