Cultura

A ser humana | Virna Teixeira

Cheguei de manhã cedo no presídio e uma das enfermeiras da equipe havia deixado um recado para mim. Pediu que eu visse uma mulher trans brasileira, recém chegada na prisão, que se expressava mal em inglês e não havia entendido suas perguntas. A enfermeira achou que ela não estava bem, provavelmente por causa do uso de drogas ilícitas. 

Chequei o registro de ‘presidiário’ no computador. A foto mostrava uma mulher graciosa, morena, com uma peruca de cabelos longos, castanhos, em camadas. Chamava-se Cátia Cristina Campbell dos Santos. Não havia muito na sua ficha médica, além das observações de praxe na recepção. 

Fui até o pavilhão onde ela estava. Pela portinhola vi o vulto de uma mulher altíssima, sozinha na cela. Quando o policial abriu a porta, ela estava sentada na parte debaixo do beliche, sem peruca, as costas curvadas, vestida no tradicional uniforme cinza local, composto por uma camiseta e moletom. Eu me apresentei, e pela familiaridade da língua, ela pareceu aliviada por um breve instante. Disse que estava desesperada por um banho. Traduzi o pedido e o policial assentiu que poderia ajudar. Depois voltou a um estado ensimesmado, parecia perplexa, ansiosa, mirando a parede. Ela evitava olhar para mim.  

— Está ouvindo vozes?

— Sim.

— …

— Está difícil, não?

— Muito, amiga!

— Você estava usando drogas?

— Sim.

— Quais?’

Crystal meth e G’

— Todo dia?

— Praticamente.

— Álcool?

— Também.

— Está vivendo nas ruas?

— Estou.

Fiz mais perguntas sobre o uso de crystal meth e GHB, consumo de outras drogas e álcool. Cátia estava ouvindo vozes há algumas semanas. Ela negou que tivesse problemas psiquiátricos no passado e reagia com desconfiança às minhas perguntas. A conversa estava tensa. Ela estava irritada e claramente paranoide. O uso era recente e expliquei que ia dar uma medicação para ajudá-la a ‘baixar’. Voltaria a vê-la em dois dias depois. Ela concordou. 

Dois dias depois, quando retornei para revisão, ela parecia mais composta. Estava sorrindo, a melhora parecia milagrosa, ainda que aparente. O policial de plantão assentiu que eu a levasse para uma sala de entrevista. 

Cátia era de fato altíssima, dois metros de altura, com uma elegância de manequim, os seios relativamente grandes mas bem distribuídos de silicone, e um pouco de silicone nas ancas. Tinha uma cor de morena jambo, os cabelos bem curtos e sua figura realmente atraía a atenção por onde quer que passasse, ainda mais num presídio. De recente entendi o sobrenome Campbell, a referência à modelo Naomi Campbell. Perguntei como estava se sentindo. Tinha tomado um banho, conseguiu dormir um pouco, estava mais disposta. 

— Amiga, o médico passou aqui e me deu um remédio bom, me ajudou. Disseram que é para alcoolismo, eu nem sou alcoólatra!

— Fui eu.

Ela soltou uma risada, disse que estava louca quando conversou comigo, não se lembrava.

— Mas ajudou viu, amiga?

Esclareci a necessidade do tranquilizante naquele momento, por uns poucos dias. Resolvi não interferir na sua expressão, no hábito de algumas transsexuais brasileiras de usar ‘amiga’ na conversa. Era uma familiaridade que parecia fazê-la sentir-se um pouco mais aberta comigo, num ambiente tão carregado e hostil para uma pessoa vulnerável como ela, e eu não queria reprimi-la ou inibir a sua linguagem, exigindo o tratamento de ‘doutora’. Há algo no trabalho como psiquiatra que é como ser detetive, você precisa intuir, seguir as pistas, saber perguntar, deixar a pessoa à vontade. 

Cátia estava na Inglaterra há alguns meses, disse para mim que era só bater em Londres que se drogava mais e acabava presa. Tinha passado um tempo em Londres antes, e tinha sido ‘babado e confusão’. As duas vezes pediu asilo político. Pedi que se explicasse. 

— Eu disse que estava passando por perigo de vida no Brasil, que tem uma pessoa querendo me matar.

— Quem está querendo te matar?

Contou para mim que há uma travesti no Rio de Janeiro que a odeia, de certa forma ela quer matá-la, pois faz de tudo para destruí-la, mas admitiu que aumentou um pouco a história para conseguir o asilo político. 

— Mas tô achando uó, da outra vez me que vim pra cá também consegui asilo. Eles me deram um monte de coisa, moradia, auxílio financeiro, agora nada. Só o direito de estar aqui. Eu tô na rua, amiga.

Disse que trabalhava como escort. Antes de Londres me disse que estava morando em Berlim. Foi bom no começo mas a barra estava pesando por lá. Tinha passado por Portugal onde ficou pouco tempo, pela França que odiou, pela Holanda. Perguntei porque estava na prisão. Tinha agredido um policial, foi um ‘bate-boca’.

Conversamos sobre as vozes, as alucinações. Recentemente ela tinha começado a ver umas travestis descendo do céu, como se fosse de uma escada, no meio de uma fumaça. Isso quando estava ‘colocada’. Enquanto ela descrevia a cena, vislumbrei a imagem de uma boate, um show de drags no meio da madrugada, gelo seco. Um cena meio ‘Blue Space’.

A voz da travesti que a odiava, a Byanna, entrava na sua cabeça para reprimi-la, quando ela estava com clientes. Queria mesmo era se livrar da voz de Byanna na cabeça dela. Byanna era poderosa, uma mistura de Rihanna com Beyoncé jovem, “não do Renaissance, dos primeiros álbuns”. No entanto tem muita inveja dela, do seu sucesso com os homens, por isso diz coisas ruins, quer colocar ela para baixo. 

Admitiu que tinha muito culpa católica, pelo jeito que foi criada, costumava cantar em igreja. Escuta vozes da família, até do pai já morto, dizendo que homossexualismo é pecado, coisa do demônio. A mãe conversa com ela, dá conselhos, fala de Nossa Senhora.

Cátia cresceu numa família de sete filhos, classe baixa de um bairro de periferia em São Paulo, muito religiosa. Com doze anos mandaram ela para a casa de uma tia no interior de Minas Gerais, já sabia que ela era trans, sofreu muita rejeição da família. Começou a se meter em confusão muito cedo na vida, passou pela FEBEM e por delegacias quando era menor. Contou uma história de um ataque transfóbico horrível que sofreu, por uns grupo de homens que a empurraram de um barranco. Foi um momento duro da entrevista. Ela fez um piada rápida para disfarçar, um humor resiliente de quem já sarou muitas cicatrizes e não quer se demorar nelas, me disse que era coisa do passado.

A conversa não era linear, ela de repente se distraia, falava da falsidade das pessoas, de algumas amigas travestis, tão competitivas. Ela fazia muito pelos outros, não reconheciam, suas relações eram intensas, acabava se dando mal. Comentou que às vezes dormia no sofá da casa de uma amiga nova, inglesa, que tem uma coração bom. “Ela é transgênera”. Mas na maior parte do tempo de fato vive pelas ruas, pelas festas de chemsex , em casas de cliente usando ‘Tina’ e GHB. Perguntei o que era a Tina. Explicou que era o crystal meth. “Dizem que a cantora Tina Turner usava muito essa droga, até morreu intoxicada, daí virou Tina”. 

Cátia também falava da prisão, de como ficava dentro da cela o tempo todo, não queriam deixar ela do lado de fora por causa dos outros presos, perguntou se não tinha prisão para pessoas trans. Estava muito duro ali. “É um inferno de Luana” (seria da Luana Piovani?). Realmente é muito delicado atender mulher trans na prisão, é um constrangimento para elas. Há alguma questão com o certificado do nome, nunca entendi direito. Tinha passado outra transexual brasileira com problemas similares por ali, mas estava muito pior que Cátia, mais agitada, quase incoerente, tiveram que colocá-la na enfermaria. 

O fato é que fecharam a última prisão para mulheres em Londres há alguns anos. A prisão de Holloway foi demolida e está sendo transformada em habitações sociais. A mais próxima seria em Surrey, nem as mulheres cis presidiárias têm direito para onde ir e o assunto é polêmico.

Discutimos a nova medicação que eu queria lhe prescrever, um antipsicótico. Ela já não vinha bem há semanas, expliquei que era provavelmente por causa da Tina, era uma psicose induzida por essa droga desgraçada. A medicação ia ajudar. Ela concordou. 

Conduzi Cátia de volta até a porta da cela, o policial tinha sumido, talvez tivesse ido ao banheiro. Quatro presos vinham caminhando pelo corredor do outro lado. Fiquei ali do lado de Cátia, como se fosse uma guardiã de sua vulnerabilidade, embora ela fosse tão alta! Um dos presos do outro lado parou na altura da sua cela, se debruçou no parapeito, casualmente. Parecia que estava no balcão de um pub. Ele fazia-se de distraído mas estava paquerando com Cátia. Um homem de quarenta anos, inglês, um loiro meio grisalho, olhos azuis, tatuagens. Havia um que de feminino nele, de bissexual. Ela de repente deu uma viradinha para o lado e deu um giro de noventa graus na minha direção, os olhos arregalados, como se dissesse “você viu, amiga?”. Seu radar tinha notado o presidiário um tanto decadente mas bonitão. Perigo à vista.

Logo o policial apareceu e Cátia regressou à sua cela, para meu alívio. 

Na semana seguinte, soube que Cátia se meteu em confusão. Ela se revoltou com um policial que não queria abrir sua cela, queria circular, tomar banho. Gritou, xingou ele, foi uma briga feia. Ela estava irritada de ficar tanto tempo trancada, disse para mim que afinal ela era “uma ser humana”. De fato, os prisioneiros ali só eram destrancados uma hora por dia. Imagine uma transexual, em regime separado. Depois ainda vi uma nota de uma funcionária do ‘comitê da diversidade’ do presídio, basicamente dizia que ela estava satisfeita com tudo, sem queixas. Uma breve visita feita sem tradução em prol do politicamente correto.

Após a briga Cátia foi transferida para outro pavilhão, onde aceitaram destrancá-la com os outros presos no horário social. Ela ficou feliz, só lamentou mesmo não ter sua peruca para jogar seu charme. Na chegada ao pavilhão conheceu outra transexual, famosa na área, também criadora de caso com policiais, uma nigeriana hiper maquiada e amorosa, altíssima como ela, que lhe deu um creme de mãos. Foi como uma grande acolhida.

Cheguei ainda a visitar Cátia umas duas ou três vezes no novo pavilhão. O remédio ajudou muito com as vozes, a paranoia. Quando a vi pela última vez, ela me disse que as coisas estavam se encaminhando e ela estava perto do final da sua breve sentença. Talvez fosse deportada para o Brasil. 

Cátia estava calma, coerente. Sua pele tinha outro brilho, estava desintoxicada, usava um brilho labial bem discreto, um gargantilha fina no pescoço e tinha uma certa consciência do que tinha se passado com ela. Estava mais esperançosa. Conversamos sobre a sua condição de mulher trans, preta e latina no exterior, em toda parte, sobre os riscos da Tina e do chemsex e sobre a necessidade urgente de aceitar-se, cuidar-se mais, de sair dessa vida.  

Ela seguiu para a fila do jantar e quando eu caminhava pelo corredor, um preso que observava a conversa se aproximou todo interessado, querendo saber se eu era médica dela, se ela era brasileira e eu desconversei. Byanna tinha razão, Cátia faz mesmo um grande sucesso com os homens.

Depois sai por uns dias de férias e quando voltei, soube que ela tinha sido solta. Fiquei me perguntando por onde estará, se terá sido deportada, se terá recaído, qual será o paradeiro dela.

 

Fotografia de Virna Teixeira

Virna Teixeira nasceu em Fortaleza, é poeta, tradutora e escritora. Publicou diversos livros de poesia e estreou recentemente como contista com o livro ‘A Pupila’, que saiu pela Kotter no Brasil e em Portugal. Vive em Londres e trabalha como psiquiatra numa prisão inglesa. O conto ‘A ser humana’ reflete algumas observações sobre a vulnerabilidade de pessoas LBGTQ+ dentro de um presidio. Virna dirige o projeto independente Carnaval Press e é editora da revista de literatura e artes visuais Theodora (www.theodorazine.com)

 

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