Cultura

A poesia de resistência e a resistência da poesia II – Viviane de Santana Paulo | Os festivais literários brasileiros

Nos grandes festivais literários brasileiros a literatura é vista como uma forma de ativismo intelectual. A chamada “poesia de resistência” é produzida principalmente por negros, indígenas e jovens, e é forte a presença das autoras negras. Seus poemas refletem as experiências coletivas dos negros no Brasil, abordando gênero, raça e classe. Chamam a atenção as escritoras Cidinha da Silva, cujo livro de contos Um Exu em Nova York ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional em 2019. A romacista Ana Maria Gonçalves, com a obra Um defeito de cor; Eliana Alvez Cruz, com o romance O Crime do Cais do Valongo. A poeta Mel Duarte, escreve sobre opressão feminina, discriminação racial e cultura do estupro, promovendo a autoestima, a resistência e o poder negr. E os versos afiados e políticos de Kimani (Cynthia Santos) atraem milhares de ouvintes e leitores.

Igualmente as autoras indígenas vêm ocupando cada vez mais espaço de maior vizibilidade, como, entre outras, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Auritha Tabajara, Márcia Wayna Kambeba

Em termos de estilos linguísticos da literatura de resistência, há preferência pelo slam, rap e cordel, e pelo verso livre nas composições. A expressão oral é valorizada por ser de fácil compreensão e disseminação e por fazer parte da cultura tanto indígena quanto periférica. Os temas permeiam em torno do chamado “feminismo negro” e das denúncias contra o racismo e o preconceito. Por sua vez,  escritores indígenas se esforçam em construir uma literatura vinculada à ecologia e à sustentabilidade e em transmitir um autêntico senso de identidade. Eles tratam das consequências do colonialismo, da opressão do Estado e do direito à terra.

O recém inaugurado Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu), realizado na pequena cidade em Minas Gerais, que sai fora do circuíto São Paulo-Rio da elite literária, é um exemplo deste movimento intelectual. Em Paracatu há cinco quilombos que ainda preservam sua cultura e 80% da população é negra. Cerca de 70 escritores participaram de mesas de debates, sendo 30% pessoas negras, incluindo a autora homenageada Conceição Evaristo, que é hoje a escritora brasileira mais importante da contemporaneidade, e Livia Sant’anna Vaz e Eliana Alvez Cruz. Para o curador Afonso Borges, “o enfrentamento ao racismo tem a ver com a desigualdade social, com a violência e com a democracia. E estes são temas que estão nas obras de autores e autoras que passaram por aqui, como Itamar Vieira junior, Jeferson Tenório, Calila das Mercês e outros, escritores que trazem a reflexão que o Brasil precisa trazer neste momento”. O evento teve a participação também da Ministra Carmen Lúcia como palestrante convidada.   

O maior festival literário no norte e nordeste do Brasil é a Festa Literária Internacional de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Nesta edição de 2023, a Flica elegeu o tema “Poéticas afro-indígenas da brasilidade no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia”, onde vive a maior população negra e população quilombola, e a segunda maior indígena do país.

Para se ter uma ideia da diversidade e riqueza destes encontros literários, a mesa de abertura da Flica ficou com a ativista e pensadora indígena Yakuy Tupinambá, líder da comunidade dos Tupinambá de Olivença, em Ilhéus; e com Berenice Borges dos Santos, mais conhecida como “Mãe Biu”, Felipe Tuxá e Oyeronke Oyewumi (Nigéria), entre outros. Falaram de literatura, liberdade, poética, resistência e decolonização. A professora Denise Carrascosa, o advogado Dinaman Tuxá e a ativista Elisa Larkin Nascimento debateram textos da coletânea Submundo: cadernos de um penitenciário, do autor Abdias do Nascimento. O livro reúne relatos produzidos nos anos 40, enquanto o artista e pensador da cultura negra estava preso no Carandiru. Tuxá é coordenador da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e junto com a ativista Larkin Nascimento, viúva de Abdias, são fundadores do Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros). O filósofo quilombola Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, o cacique e escritor Juvenal Payayá e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins discutiram sobre memória e narrativas ligadas à terra. As artistas visuais Célia Tupinambá, Yacunã Tuxá e a escritora Micheliny Verunschk falaram sobre vozes ancestrais. As autoras Luciany Aparecida, Marilene Felinto e Auritha Tabajara abordaram a escrita e a construção do imaginário nacional.

O festival literáro mais conhecido na área política e social é a Festa Literária das Periferias (Flup), no Rio de Janeiro, que acontece desde 2018. Em sua 23 edição a curadoria buscou participação internacional com a presença de 40 poetas dos cinco continentes para disputar o II World Poetry Slam Championship (WPSC). Além de sediar pela primeira vez uma competição mundial de Slam, em quatro línguas oficiais: português, espanhol, francês e inglês, com traduções simultâneas e intérpretes de libras, realizaram-se o TransSlam Internacional e o slam indígena, II Slam Coalkan

E realizou-se a apresentação da peça “Macacos”, de Clayton Nascimento, ganhadora dos prêmios APCA e Shell, o mais importante do teatro brasileiro. Trata-se de um monólogo em nove episódios nos quais a palavra “macaco” é usada como forma de denúncia ao racismo estrutural na sociedade brasileira. As cenas da peça são pautadas na história brasileira, como também em situações vividas por grandes artistas negros, como Elza Soares e Machado de Assis, e inclui relatos e estatísticas de jovens negros presos e executados pela polícia militar no Brasil até 2022. A ideia para “Macacos” surgiu após um episódio violento vivido pelo autor. Nascimento voltava do cinema, em São Paulo, na rua Augusta, a caminho de casa – um trajeto trivial feito por vários jovens –, e foi interpelado por um casal branco que o acusou de ladrão. E, de repente, mais nove pessoas estavam ao seu redor. Acordou no chão, ferido e sem os seus pertences. O casal branco o havia assaltado. Clayton nunca mais saiu à rua nem tomava ônibus depois das dezoito e trinta. Demorou meses até se recuperar dos ferimentos.

Por fim, vale a pena destacar o nome de Antonio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, grande filósofo quilombola, autor de obras que trazem reflexões originais sobre a colonização e o que ele chama de contracolonização“. E por que não considerá-lo filósofo? O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de “contra-colonização”, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos.* Bispo tece visões peculiares em torno dos modos de viver, sobre habitação e o relacionamento do ser humano com os animais e a natureza, criando neologismos para denominar aspectos dos temas. Na sua opinião, “Todos os jeitos de se adestrar parecem com o jeito de colonizar, que se parece com o jeito de educar, que parece com o jeito de domesticar. Daí eu aprendi que uma das primeiras coisas que se faz quando se vai adestrar um animal é nominá-lo. Então comecei a me preocupar e observar isso com mais cuidado. E fui entendendo que a arte de nominar é a arte de dominar”. O termo “confluência”, usado para falar sobre as dinâmicas sociais de convivência, é uma de suas nomeações. Ele acredita na confluência das culturas, no “ajuntamento”, mas alerta para a necessidade de preservação da identidade e peculiaridade de cada cultura. A mistura não pode ser um processo de apagamento das diferentes singularidades culturais. Em suas palavras: “Um rio não deixa de ser um rio quando ele conflui com outro rio. Ele continua em sua essência. Essa é a grandeza da confluência”. O pensamento colonialista, no entanto, não abre margem para a coexistência, fazendo da substituição cultural a tônica do seu modus operandi.  

A literatura continua sendo uma forma de resistência e empoderamento social. Seus meios de alcance aumentaram com as novas tecnologias e proporcionam aos poetas formas acessíveis de divulgação das obras à população. Quando falta espaço para eles nos meios tradicionais, eles se reinventam através de saraus, movimentos e festivais literários nas comunidades. Agora resta os meios institucionais aprenderem a valorizar esta imensa diversidade e este dinamismo frutífero da literatura brasileira atual, e promovê-la nacional e internacionalmente. 

 

*PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antonio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos>

 

Viviane de Santana Paulo (São Paulo/Berlim), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, lebendiges wesen namens gedicht – ser vivo chamado poema (Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023), distribuição de passos (2023)Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em revistas e jornais entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Orte (Suíça), DiVersos (Portugal), Argos e Alforja (México). Traduziu vários poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Josef Kafka, Sarah Kirch, Gottfried Benn. Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia. (vsantanapaulo@yahoo.com.br).


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