Cultura

A fome das coisas | Beatriz Aquino

11h15 da manhã de um sábado. Uma cidade pequena e precuiçosa tenta avançar pelo dia em sua letargia de provincia. Na praça central,  algumas mesas dispostas embaixo das árvores esperam por famílias para um pic nic, que geralmente só acontecem aos domingos. Um bar na frente da praça acolhe os poucos e habituais clientes que ali se reúnem para beber uns copos e reclamar do governo. Ao lado dele, a barbearia que funciona como um anexo do bar e é mobiliada com os mesmos móveis tacanhos e gastos. Do outro lado da praça, a igreja com um porta lateral para a sacristia, medida prática para atender o entra e sai das beatas e dos arrependidos de última hora. E ao lado desta porta, o salão de beleza e em seguida uma casa de chá. Lugar frequentado por mulheres de família, tementes a Deus e que fazem questão de sentarem-se de costas para o bar, lugar por elas considerado como antro de perdição.

 

E na pequena embarcação social que era aquela cidade,  naquela pequena ilha de interação que era a praça, tudo funcionava em equilibrio. O inferno de um lado, representado pelo bar e seus frequentadores. O céu do outro, na forma da tríplice aliança igreja-sacristia-salão de beleza. Ou seja, salvação, penitência e maledicência. No meio disso tudo, a delegacia em um prédio geminado à prefeitura e também ao banco. Tudo pronto e feito para acudir e domar as urgências humanas. E eu não teria mais nada para contar de interessante sobre essa cidade não fosse um acontecimento inesperado, desses que possuem a proporção de meteoros ou terremotos dependendo do percentual de hipocrisia e ignorância de cada região. Vos relato o acontecido;

 

Estava eu sentado nesse papel anônimo ao qual os escritores se prestam e que por isso passam desapercebidos em quase todos os cenários que visitam de tão observadores e neutros que são quando surgiu no meio da rua asfaltada, a única da cidade, uma figura que bem que poderia pertencer à mitologia grega ou a um dos muitos filmes esquecidos nos baús de Fellini.  Soraya, vamos cham-la assim, embora eu acredite que nenhum nome possa fazer jus a tão bela criatura, mas foi tudo o que a minha pobre e já cansada imaginação conseguiu conceber, Soraya  atravessava a rua distraída do mundo e de sua beleza e parecia genuinamente não perceber os olhares de admiração que deixava atrás de si. Cheia de curvas, mas ainda assim dona de uma elegância ímpar, portava um vestido vermelho sangue bordado com flores gigantescas que faziam suas curvas parecerem ainda mais voluptuosas e quase psicodélicas. Seu tornozelos mimosos se movimentavam em velocidade própria e todo o seu corpo, cabelos e olhos, que eram imensos e verdes, pareciam animados por uma realidade quântica. Tudo nela fazia o mundo girar em um tempo dilatado e era como se todo o resto lhe orbitasse em torno. Seu busto generoso, mas ainda casto, impunha devaneios imediatos aos que por eles passassem os olhos. Sua boca era como um pequeno ninho róseo de passáros recém nascidos em espera aflita pelo alimento do qual ainda  desconheciam a origem e o gosto. Soraya possuia a combinação diabólica com que algumas mulheres nascem seja por dever ou por sina. Um corpo esculpido pelos deuses e feito para o prazer aliado a um rosto cheio de uma castidade digna. ‘Pobre moça’, pensei assim que nela pus os olhos. Sim porque esses olhos enrugados aqui também me ensinaram a entender o tanto de beleza e tragédia que cada ser humano carrega consigo.

 

Soraya atravessa a praça deixando com sua cauda de cometa imprevisível uma trilha de admiração e raiva. Os homens que achavam que poderiam ter alguma chance com a moça se empertigavam inteiros. Estufavam o peito e disputavam espaço físico com os outros homens em uma dança de acasalamento pra lá de coreografada e óbvia. Os que sabiam-se condenados apenas à admiração, embeveciam-se do que viam. Enquanto outros, menos generosos e amargados pela vida, tramavam em suas mentes formas de exorciza-la, transformando-a em uma espécie de demônio.  Tentando até mesmo desmerecer seus atributos e suas virtudes. Como se isso fosse possível.

 

Soraya era tão bonita e de uma beleza tão inteligente que nenhum ângulo seu conseguia traí-la. De todos os lados, beleza, harmonia e dignidade. Combinação por vezes insuportável eu sei. Principalmente para as senhoras e moças que passavam a existência entre a tríplice esteira da sociedade; igreja-sacristia-salão de beleza. Ou religião-vaidade-e-culpa. Como preferirem.

 

E Algumas dessas moças já se amontoavam na vidraça do cabeleleiro para ver o que havia causado tamanha comoção nos homens que para elas eram vis e pecadores, mas mesmo assim e ainda assim, propriedades delas.

 

– Ah, é aquela sonsa da Soraya. Adora se exibir nesses vestidos que nem lhe ficam tão bem assim. – exclamou uma delas examinando em automâtico reflexo, o busto mirrado por baixo do vestido .

 

– Sim, depois não pode reclamar que os homens lhe digam coisas na rua. – acrescentou sua mãe, ajeitando os bobs nos cabelos.

 

E Soraya bem que poderia ter continuado o passo e ido sofrer a solidão do Olimpo onde as deusas encarnadas costumam passar seus dias a lamentar a cupidez humana, mas algo naquele dia a impeliu para uma das mesas do centro da praça. E como sempre, distraída de si e dos outros, sentou-se calmamente e tirou da sua bolsa, dessas com que as moças costumam fazer a feira e dela tirou a metade de um galeto assado envolto em fino papel manteiga. E dispondo o frango à sua frente assim como quem arruma a mesa da cozinha de casa, Soraya começou a comê-lo delicadamente. Destrinchava o frango embebido em azeite e ervas e juntando a carne com os dedos como quem arranca o sumo de uma fruta madura o levava até a boca, deliciando-se com o sabor daquela pobre e pequena criatura. Tão desavisada das coisas do mundo e tão a serviço da fome do homem como também era ela.  Ao terminar de comer um pedaço, lambia os dedos com uma sofreguidão ingênua e tornava a agarrar outro dando a sua intimidade a quem passasse, exprimindo  o tamanho da sua fome e da sua necessidade de vida em plena luz do dia.

 

É  claro que aquilo, que poderia ser considerado como um ato de pura espontaneidade caso viesse de qualquer outro mortal, foi tomado como ofensa imperdoável por aquela pequena província tão pouco habituada a ouvir e a entender a fome do próprio corpo e também a fome que mora no corpo do próximo.

 

Os homens traduziam o ato como um convite a liberdades que há muitos eles sonhavam tomar, não fosse a moça donzela e de boa famíla. As mulheres, assim como o padre que havia se juntado a elas na observação do fato, tomaram sua atitude como afronta mortal. Algo pecaminoso. Soraya era um acontecimento da natureza, um acidente geográfico, um abalo sísmico que não poderia causar senão pânico e terror aos desavisados.

 

– Passei a manhã toda a ajeitar os cabelos e essa desavergonhada me vira o centro das atenções comendo com as mãos feito um bicho no cio. – Pensou alto a Dona Hermínia que apesar de beata, gostava de arrumar os cabelos aos sábados e passar em frente ao bar para que mesmo com ar indignado ouvisse algum gracejo e à noite pensar neles enquanto se revirava nos lençóis entre rezas e gemidos.

 

– É uma descabida! Se oferecer assim! Olha como lambe os dedos! Desfrutável, zoccola, bandida!

 

– Marafona! Perdida! Ninfa!

 

Reclamava outras duas.

 

Os insultos se inflamaram e o padre se juntou às suas beatas. E os homens, para não fazerem feio na frente do padre e de suas senhoras, engrossaram o coro.

 

– Madalena! Desgarrada! Tentadora! Demônio, isso sim!

 

A algazarra foi tal e dei graças a Deus por estarmos em 1950 e não nos tempos medievais, pois juro que tive a impressão de ter visto alguém começar a preparar uma fogueira no meio da praça, que o padre decidiu convocar uma assembléia extraordinária ali mesmo. O delegado e o prefeito correram às pressas para ver o que se passava.

 

Enquanto isso, talvez tomada pela surdez ou imbecilidade dada aos anjos que ousam por os pés alvos nessa terra cinza, Soraya continuava a comer em sua distraída volúpia. Seus seios convulsionavam por baixo do decote e seu corpo se contorcia numa dança orgânica e ancestral. Sua pele se tingia de um róseo pálido que progredia para um vermelho nítido e essa cor se espalhava por suas clavículas e pescoço indo pousar em seu rosto, o que lhe dava um aspecto de querubim em chamas. Soraya agora não era mais gente. Era um corpo a serviço de uma santidade ainda desconhecida. Era filha da terra. De uma terra distante e pagã. Soraya era um assombro de luz e beleza e bem que poderia ter sido considerada uma aparição sacra caso estivesse no altar da igreja e claro, não estivesse comendo com as mãos a metade um animal.

 

Os pequenos senhores daquela província, detentores do também pequeno e sórdido poder, decidiram, após inúmeros pedidos, que Soraya deveria ser punida. E ainda mais. Deveria ser amordaçada, desmembrada, extinta. Apagada da história daquele lugar cheio de uma paz conveniente e hipócrita.

 

A turba, reunida na frente da igreja se dirigiu para o centro da praça onde estava a moça. Munidos de paus e foices, gritavam palavras de exorcismo e ordem aprendidas às pressas na cartilha do dia.

 

Soraya, ainda distraída em seu transe de anjo, mal se deu conta do que a atingiu. Antes do primeiro golpe, uma luz diáfana a envolveu e tive a impressão de que todo o seu espírito foi arrebatado. Soraya sorria um sorriso infantil e ingênuo enquanto suas formas desapareciam sobre as mãos de seus algozes. Tudo o que sobrou dela foi uma carcaça quebradiça e um resto qualquer de pele que a turba faminta e ruidosa esqueceu de levar pra casa.  Soraya, não era um demônio, nem santa, tampouco um anjo. Soraya era apenas uma mulher livre…

 

Beatriz Aquino é formada em Publicidade e Propaganda e é atriz de teatro. Tem publicados os livros:  Apneia (romance), A Savana e Eu (crônicas), Anne B.  – Sobre a Delicadeza da forma (romance) e Caligrafia Selvagem, lançado em Julho de 2020. Vive atualmente em Portugal.

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