Cultura

Água | Clécio Branco

Qual é a imagem da água? Da água que cai das nuvens em forma de chuva, da que escorre subterrânea, da que se arrasta nos rios? Das águas das fontes, dos lagos dourados ou cristalinos? Não há propriamente a imagem da água em nenhum desses casos, mas, sim, uma imagem das margens que o olhar humano capta, criada por limites e contornos. Enquanto força sem imagem, a água, e não só ela em si, mas o espelho d’água, o toque da água, o seu frescor, tudo isso nos conduz a sensações indefinidas, ainda que não pensemos nisso.  

 

As crianças lidam maravilhosamente com as poças d’água que recobrem a grama logo após fortes chuvas de verão. Quem não se lembra de uma cena de infância como essa: a grama fina e verde suavemente recoberta pela água limpa da chuva. Lembranças das águas de um pequeno lago que desaguam na areia ou na grama precipitam em nós as mais sublimes sensações.



As imagens que descrevo vêm das bordas: a grama verde e a suavidade da fina camada de água. O que elas causam à percepção, aos sentidos? Talvez sejam apenas as imagens submetidas ao sistema sensório-motor, demasiadamente adaptado às percepções humanas, por isso excludentes dos sons e imagens da pura natureza em si. Seria necessário libertar em nós a natureza na forma como se encontra subsumida no humano. O “mundo que se perdeu” está no animismo por detrás dos sentidos que se condicionaram à urgência humana de sobreviver no mundo “demasiadamente tecnológico”. As sensações da natureza, em nossa natureza humanizada, ficam indefinidas por estar transitando, cada vez mais, longe de casa, ou seja, a natureza mesma. Esse encontro do corpo humano com esse corpo indefinido, a água, dá-nos uma prova da força da natureza sobre nós. Os indefinidos são fontes de sensações que não sabemos descrever, quanto a elas apenas dizemos coisas do tipo: Isso é bom. Sinto uma alegria. Sinto um medo. Sinto uma insegurança. Sinto uma desorientação. Mas não sabemos dizer os porquês. A criança de colo, principalmente, vive mergulhada nos indefinidos. Por isso, ela lida tão bem com a água. As crianças e os animais vivem por afectos, já os adultos não. Estes ficam demasiadamente chateados com a chuva e com as poças d’água. As crianças, diferentemente dos adultos, não se prendem tanto às definições como aos afectos que lhes afectam. Em nosso caso, quando adultos – a não ser que sejamos poetas – reduzimos tudo à percepção imediata e básica – todos os afectos a um só bloco de imagens – e paramos todo o processo da natureza em nós. 

 

Enquanto definições, as imagens tendem a encerrar um processo. Mas existem imagens que têm a finalidade de iniciar processos indefinidos. Elas são as imagens que se dissipam, se pulverizam no espaço e no tempo. Essas são as mais interessantes. 

 

Estamos ficando cada vez mais humanos, por isso, paradoxalmente, sentindo cada vez menos a natureza em nós. Talvez diante das rupturas que vivemos, e que põem em risco a sobrevivência da espécie humana, possamos pensar melhor nossa afinidade com o ecossistema do qual somos fundamentais integrantes.

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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