Cultura

Visões de estrelas e busca de sonhos | José Manuel Simões

Foto de Komarov Egor

Chovia torrencialmente naquela noite quente do Verão de 1987 em que viram Sting, sim, o músico inglês, entrar num lugar onde um amigo carioca que Mordy tinha conhecido num jogo de futeboley no Posto 4 os tinha levado para tomar um chá vegetal indígena de nome ayahuasca. Segundo ele, iriam mudar a vida. Sting e a esposa entraram aparentemente receosos, como quem se estava questionando sobre o que lhes poderia acontecer. A cerimónia estava prestes a começar. 

 

Dias antes tinham assistido ao show do ex-Police, vestido de branco, no Maracanã, 200 mil pessoas, o músico notoriamente triste pela morte do pai naquela mesma tarde, mas vê-lo ali, tão perto, naquela situação, despertou neles um sentimento de perplexidade. 

 

Sorridente e determinado, vivendo no mundo da lua, o rapaz que nascera em Coimbra – de onde estava cada vez mais desvinculado – era pouco mais que um jovem bem-parecido e aventureiro em busca de sonhos, como aquele, o de experimentar umas ervas que uns diziam ser do diabo e outros de limpeza da alma. Talvez tenha sido a mesma curiosidade que terá levado até ali Sting e a esposa na companhia de um casal, ou o fato de se querer redimir da morte do pai, logo depois da da mãe, e de não ter podido ir aos funerais. 

 

Quando o mestre entrou na sala com ar de profeta e extrema amabilidade, irrompeu um silêncio quase perturbador. Formou-se uma fila. Ao chegarem à mesa, deram-lhes um copo com um líquido sacramental castanho que parecia terra de odores nauseabundos. Logo ali lhe deu vontade de vomitar e, a avaliar pela expressão de Sting, a reação dele não seria melhor. Sentaram-se numa das primeiras filas, ele numa das últimas, e perdeu-os de vista. A ele, ao Mordy, ao amigo e a tudo o que até àquele momento parecia real. 

 

Depois da música de fundo ter entrado em cena, o amigo confortando-os dizendo que aquele ritual iria purificá-los, deixou-se levar para um mundo de visões e vozes que repetiam monocórdica e enfaticamente na sua cabeça: “Plasma, Plasma, proclama a paz, proclama a paz, proclama a paz, proclama a paz…”. Ao correr para a porta para vomitar, constata que Sting está pálido. A partir daí não se lembra do que aconteceu. 

 

Apenas a visão de uma estrela, um ponto de luz raiando de um imaginário céu. 

 

Mordy convidou-o para irem juntos, por terra, do Brasil aos Estados Unidos, que quando o dinheiro acabasse ele seguraria as despesas. Considerou e declinou. Queria, disse, conhecer melhor o Brasil. Sentia que ainda não era hora de partir. 

 

Após o Mordy chegaram dois suíços ao casarão onde morava e alugava quartos – que foram embora sem se despedir nem pagar – e uma alemã, a Meggy, que, acabada de aterrar no Brasil, vinda de uma longa viagem de seis meses pela América do Sul – Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Equador, Bolívia e Peru – foi assaltada. Depois de fazerem amor, foram à lanchonete do senhor João do Minho, voltaram e a mochila dela desaparecera. Levaram tudo o que tinha, incluindo passaporte e dinheiro. 

 

Nessa altura, apareceu Bruno Santos dizendo que na rua havia grande confusão; um polícia tinha espancado um ladrão que tinha assaltado uma velhinha. O pai do Bruno trabalhava na Varig, pelo que ele viajava com passagem quase gratuita. Certa vez regressou de Portugal, tinha feito uma visita à família do português em Coimbra, trazia um quarto do dinheiro que lhe haviam mandado em mãos, “que talvez o filho estivesse a ter faltas”, limitando-se a mentir que entregava o restante quando vendesse os uísques que tinha comprado no Freeport. Dona Rosa, a mãe, tinha igualmente entregado um cartão postal e uma carta que tinha recebido em casa enviada por um amigo de Macau, o Nabais, de férias na Tailândia, rapaz de uma vivacidade em todo particular que escrevia umas coisas meio hilariantes. Abriu a carta, que tinha dentro duas folhas e um cartão postal. “Amigão. Depois de ter passado pela ilha de Phuket e desaguado na vila com o mesmo nome – onde, pasma-te, vi dezenas de lojas com meninas à venda ou para alugar nas montras cor-de-rosa com um número redondo na blusa – eis que cheguei a este lugar divino, imponente santuário da natureza”. Virou o postal ao contrário, coqueiros, barcos de recreio, um mar esplêndido, que lugar paradisíaco, pensou. “Sabes, estas ilhas são sublimes mas não consigo abstrair-me da possibilidade da onda gigante voltar. Deve ser porque em todo o lado se encontram placas a indicar: “zona de evacuação em caso de tsunami”. E se viesse agora mesmo, nesta hora de mar plácido, à tragédia seguir-se-iam lágrimas e depois, de novo, a bonança? Não será um privilégio morrer aqui, neste lugar onde a natureza toma dimensões do divino? Claro que quem em minutos viu a família ser levada de vez por uma onda, deve achar esta ideia completamente disparatada. Ontem nadei com centenas de peixinhos multicoloridos em corais prodigiosos, mas de vez em quando lá estava eu a olhar o horizonte a ver se a onda vinha”. Pousou a carta no regaço e passou-lhe pela cabeça que os ares de Macau afetavam visivelmente o comportamento do Nabais. A escrita, em quase grafismo, remetia para os caracteres chineses: “Os locais não acreditam nessa possibilidade e se se fala de morte parecem recear sobretudo a do rei. Figura realmente admirável, polo unificador e pacificador das relações entre budistas e muçulmanos e entre vermelhos e amarelos, o Rei da Tailândia, Bhumibol Adulyadej – um dos monarcas mais ricos do mundo com uma fortuna avaliada em 23,5 mil milhões de euros – está doente e todos os tailandeses temem a sua definitiva partida. Acho mesmo que perdendo o rei perdem o fiel da balança e não vão conseguir suplantar a perda. Eles veneram-no na mesma proporção em que desprezam o príncipe, um playboy, dizem, e sem sucessão capaz, estou em crer que a Monarquia morrerá com ele. Preocupo-me porque, tu sabes, a Tailândia é linda, os tailandeses, sobretudo os do Norte, os budistas, são altamente pacifistas, mas isto está preso por um fio. Uma outra coisa que não me sai do pensamento é a eventual relação entre um filme do qual agora não me lembro o nome, sim, já sei, o “The Beach”, que revelou ao mundo este paraíso – e o tsunami que aconteceu dois anos depois, precisamente quando estas praias idílicas começaram a ser invadidas por massas de turistas. Aliás, é curioso constatar que os visitantes, na sua grande maioria casais jovens europeus, têm pinta de estrelas de cinema. Há pouco subi até ao miradouro mais alto da ilha usurpada, a Phi Phi Don, para ver o pôr-do-sol com um belo casal de espanhóis, ou melhor, de Bilbau, onde um local, ex-lutador de Muay Thai – uma luta tipo boxe mas em que vale tudo até joelhadas – desfazia a erva que colocou num cachimbo de água feito de bambu que rodou de mão em mão. Quando chegou até mim, não o neguei e puxei um trago que me deixou meio sonhador meio preocupado. Espero que esteja tudo bem contigo e fica marcado o nosso encontro para a Praia da Tocha em Julho. Tchau. Raul Nabais”. 

 

O Nabais era um rapaz curioso, amigo de infância e filho da melhor amiga da mãe, uns anos mais velho, uns 24 ou 25, não sabia que ele tinha ido para o Brasil, que mesmo que quisesse desta vez não iriam estar juntos durante as férias. 

 

“Boas notícias?” Bruno, até então em silêncio, ia tirando distraidamente umas coisas da carteira, entre elas uma fotografia da irmã. “É a Nádia. É bem legal mas não se meta com ela que é perigosa”. Como assim? “Olhe, por exemplo, se alguém entra no quarto dela fica gelado. Ela faz macumba, feitiçaria e black magic, tudo junto. Nem sequer pense em a querer conhecer”. 

 

Curioso que era, foi atrás da irmã do Bruno. Ficou primeiro amigo da mãe, depois dela. Certa vez, exausto que estava de uma noite de gafieira lá em Santa Teresa, pediu a Dona Isaurinha para dormir um pouco. A senhora indicou-lhe um quarto. Acordou uma hora depois congelado, lembrou-se do que o Bruno tinha dito e saiu meio assustado do compartimento. Dona Isaurinha só então percebeu o sucedido: “Nádia é muito estranha sabe? Isso acontece com toda a gente que entra aí. Eu já não lembrava porque poucos amigos vêm cá em casa. 

 

Podia ter ido para o meu quarto. Me desculpe viu…”, explicou com ar de quem já se habituou às peripécias espíritas da filha. Num outro dia Nádia apareceu no casarão com umas velas amarelas que acendeu no salão do primeiro andar. Sem razão aparente nem vento a soprar, as chamas extinguiram-se, todas, uma a uma, em fila, segundo após segundo até à última, altura em que os vidros do rés-do-chão começaram a cair no ladrilho com estardalhaço. Desceu, tremendo com a continuidade do partir de vidros. No escuro vislumbrou um homem sem uma perna, a ponta da muleta de madeira a quebrar o que restava das vidraças, o chão do salão inundado de cacos de vidros. “Você está doido, cara?” Gritou-lhe enquanto se aproximava. O homem, barba descomunal, cheiro a éter insuportável, mãos em posição de perdão, suplicava quase em sussurro: “Me desculpe, me desculpe”. Boquiaberto, por entre o bordado metálico da entrada do salão vê aquela estranha figura a virar-lhe as costas, um pé descalço, a coxear, a muleta de madeira meio torta a bater no chão molhado da calçada. Nádia estava sentada no fundo das escadas, serena, liberta, a observar tudo aquilo como se a missão estivesse cumprida. 

 

José Manuel Simões

 

 

 

Fotografia de José Manuel Simões

 

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

 

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura