Cultura

Vinicius, poeta do encontro

A vida de Vinicius de Moraes pode ser pensada como um ato de poesia, um poema em movimento, em (re) invenção constante. Da mesma forma, qualquer leitura de sua obra será sempre legítima se levar em conta o rico universo de relações pessoais que conformou a sua existência. Este esboço biográfico quer mostrar como em Vinícius vida e obra se articulam de modo único e específico, a partir de uma movimentação afetiva ampla, porosa às diferenças, aos espelhos, aos opostos, sob o signo pulsante da paixão. Dinâmica que levou o poeta a vivenciar, com intensidades semelhantes, sempre tangenciando limites, amores diversos, parcerias de naturezas plurais, produções literárias e musicais de largo espectro expressivo. A arte do encontro, “embora haja tanto desencontro”, se dando tanto no trânsito crítico-criativo pelo terreno das linguagens artísticas – cinema, teatro, música, poesia, prosa, crônica –, quanto pela interação incansável com amigos de todas as classes, culturas variadas, deixando “a casa sempre aberta” à troca afetuosa, ao contato humano, no espaço da vida. 

 

A poesia e a música da família 

 

O interesse pela música, segundo a biografia escrita por sua irmã mais nova e admiradora Laetitia Cruz de Moraes, começa na vida do poeta muito cedo, alguns meses após o seu nascimento em 19 de outubro de 1913, antes mesmo da articulação das palavras: “…ainda bebê, cantarolava uma canção de ninar com a primeira letra que compôs e que hoje seria, definitiva e totalmente ‘bossanova’, ou ‘ponto’ de macumba; era assim: ê batetê, ê cabidu, ê batetê, ê batetê, cabidu.” Essa recordação lúdica, amorosa e docemente folclórica, possui a particularidade de abrir a porta do universo familiar de Vinicius, espaço pelo qual vamos adentrar a fim de apreender as origens de suas paixões pela poesia e pela música. 

 

Seu pai, Clodoaldo, além de poeta (habilidade também encontrada na vó Neném e na bisavó Anna Seiblitz), doutor em latim e dono de boa cultura literária, tocava e cantava ao violão canções antigas que enchiam o filho de curiosidade e encanto. Vinicius dedicou-lhe, por ocasião de sua morte, um poema de fôlego chamado Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta cidadão. A peça começa com um verso de incrível força poética, imagem do choque causado na alma do poeta pelo recebimento da fatídica notícia, dada por sua mãe ao telefone quando Vinicius estava em Los Angeles exercendo o cargo de vicecônsul do Brasil: “A morte chegou pelo telefone em longas espirais metálicas”. 

 

Em outras passagens, Vinicius destaca a latência da vida lírica nos ombros de seu “Pai da poesia”: “…teus ombros possantes/ se curvavam como ao peso da enorme poesia/ Que não realizaste…”, mas que acaba por transmitir verdadeiro legado ao filho: “A mim me deste/ A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar/ Em silêncio…”. O futuro cantor de Eu sei que vou te amar inicia a sua caminhada poética com pequenos furtos de versos do pai, movido por fins amorosos: “…a mim me deste/ O primeiro verso à namorada. Furtei-o/ De entre teus papéis: quem sabe onde andará…”. Mas a evocação mais doída vem da música que então era entoada: “Como quisera escutar-te de novo cantar criando em mim/ A atonia do passado! Quantas baladas, meu pai/ E que lindas! Quem te ensinou as doces cantigas/ Com que embalavas meu dormir?” 

 

Sua mãe, Lydia, era a disciplinadora da família, e quem, ainda segundo Laetitia, transmitiu aos filhos a tendência mística. Adorava, no entanto, tocar piano e cantar, hábito herdado de sua mãe, a vó Celestina, também pianeira de primeira. Nem a ida para a Ilha do Governador, para se recuperar de uma operação de retirada de um tumor benigno, arrefece o ímpeto musical de Lydia. O poeta tem lembranças das “noites na Ilha com o pai tocando violão e a mãe cantando…”. 

 

Para completar os anos de formação musical familiar, há, ainda, a presença boêmia de dois tios, um do lado paterno da família, Henriquinho, e outro do materno, tio Niboca, “irmão caçula da mãe e apenas 6 meses mais velho do que ele”. O primeiro era seresteiro dos bons, amigo do compositor e cantor Bororó, e que se tornará o delegado de polícia Henrique de Mello Moraes. Doze anos mais velho do que Vinicius, o inicia “na arte da boêmia”. Tio Niboca, por sua vez, chega a ter uma composição gravada por Carmem Miranda –Diz que tem -, e carregará, sempre que possível, Vinicius para “aventuras perigosas”… Laetitia, com palavras precisas, sintetiza as influências do meio familiar em geral na personalidade do poeta: “…a capacidade de lidar com as pessoas as mais diversas, o gosto pela casa cheia, o prazer da mesa farta, do trabalho em meio à desordem e ao barulho”. 

 

 

Os anos de formação 

 

No colégio Santo Inácio, onde cursa o secundário e bacharelase em Letras, tem início a cisão que marcará toda a sua existência e poética, configurando os pares opositivos que vão reverberar, em diferentes graus de intensidade, para sempre em sua alma: o jovem garoto solar, arteiro, namorador, carioca praiano, amigo das aventuras e das festas, deixa crescer no espírito a sombra intimidante das verdades sagradas, que geram “angústia e conflito interior”. Estado mortificante que propiciará, mais tarde, a emergência da vertente transcendente de sua poesia, de fundo místico e moral, presente, de modo mais explícito, em seus primeiros livros. 

 

Se, por um lado, oferece-se para cantar no coro da Igreja, realiza peças teatrais em parceria com outros estudantes, forma um conjunto musical com os irmãos Tapajós no qual canta, toca violão e engendra suas primeiras composições, iniciando os exercícios de sua “arte de estabelecer contatos”; por outro, sofre a “violência pelas pressões de formação religiosa” de uma congregação de jesuítas severos. Como consequência dessa educação, Vinicius bancará um flerte com as idéias de direita do pensamento católico carioca, ordenadas por Jackson de Figueiredo no Centro Dom Vital, e propagadas por seu grande amigo e guru, o escritor e cinéfilo Otávio de Faria, nos anos em que cursa a Faculdade de Direito no Catete. 

 

Vinicius entra para a Faculdade no ano de 1930 e se liga mais às atividades extraclasses do que ao estudo acadêmico das leis. Os eventos do CAJU (Centro Acadêmico Jurídico Universitário), os encontros boêmios nos bares do Centro da cidade para infindáveis debates intelectuais, as longas caminhadas com Otávio de Faria, envoltas em discussões torturadas por ânsias de pureza em meio à inexorabilidade do desejo humano, a criação de um cineclube e de uma revista sobre cinema, o seduzem muito mais do que os programas das disciplinas oferecidas na Faculdade. 

 

A essa altura, mesmo metido em discussões abissais sobre o desejo de absoluto abstrato e as objetivações culposas da carne, deixando que dogmas religiosos perpassem sua poesia, o poeta se mantém, simultaneamente, ligado às atividades físicas da infância, ao fazer, por exemplo, jiu-jitsu com o professor Hélio Gracie. Atitude que aponta para a possibilidade de aproximar vivências de tipos sociais distintos, volta e meia em conflito à época, como os boêmios e os desportistas. Manuel Bandeira, em várias de suas Crônicas da Província do Brasil, nos descreve o embate ideológico/ existencial entre artistas boêmios tísicos e o pessoal que segue a moda de malhação, novidade norte-americana cultuada por muitos jovens no período. Óbvio que o poeta “pernambucano malcarioquizado”, que conviveu com uma tuberculose até o final de sua longa vida, louva as aventuras de boêmios terminais, fraquíssimos, mas sempre galvanizados para uma boa noitada, uma farra homérica, como Zeca do Patrocínio; Sinhô, nosso Rei do Samba; o barítono Pequenino. No poema O desespero da piedade, Vinicius põe lado a lado alguns desses tipos de modo trágico: “Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta/ Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina/ Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte/ E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.” 

 

A tendência político-intelectual que se configura com mais força entre os jovens de elite da Faculdade é a da direita católica, de franco antimodernismo e antimarxismo, embora a esquerda se fizesse notar também ali, ainda que em número bem mais reduzido. Após a explosão da Semana de 22, grupos heterogêneos – como os ligados aos manifestos da Anta (Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Plínio Salgado) e da Antropofagia (Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Raul Bopp)-, se estruturam e pensam a questão do nacional de modo antagônico, demarcando os caminhos de direita e de esquerda dos homens de letras do país. 

 

A revista A Ordem, da direita católica, lançada em 1922 (ano em que também é fundado o Partido Comunista Brasileiro), mantém suas atividades, agora sob a direção de Tristão de Athayde. Vinicius, em 1932, consegue naquele espaço editorial a primeira publicação de um poema seu – A transfiguração da Montanha. Plínio Salgado, principal articulador da direita modernista, por essa época volta da Itália pré-fascista encantado com as idéias por lá divulgadas, e vai ao CAJU colher jovens para formar os quadros da Ação Integralista Brasileira. 

 

Vinicius, no transcorrer da década de 30, ainda que fortemente vinculado às idéias dos “jovens tomistas” do CAJU, exerce a sua arte de convivência criativa ao ter contato com as obras de escritores que apresentam retratos outros da alma e da cultura brasileira. Relações produtivas com autores menos ufanistas e mais críticos, que vão desencadear, nos anos 40, aventuras de descobrimento modernista do Brasil e de mudança consciente de suas posições políticas. 

 

Carlos Drummond de Andrade, poeta de Sentimento do Mundo e Rosa do Povo, deixa claro, em depoimento, a simultaneidade afetiva de convívios do poeta à época: “Sempre tive uma ligação profunda e antiga com Vinícius. Essa ligação vinha de 1935, quando ambos ainda éramos muito jovens. Uma grande afeição sempre me ligou a ele. Era um poeta sem mistérios”.  

 

Em relação a Murilo Mendes, Vinicius nos revela o primeiro contato com a produção do poeta surrealista católico: “Meu primeiro encontro, em Poesia, depois das inelutáveis influências da juventude, foi com Murilo Mendes”; “Em casa li o livro [Poemas] até de manhã. Achei-o magistral, até no que tinha de artifício”. Livro que possui poemas de explícito nacionalismo modernista, e que usa procedimentos estilísticos paródicos e críticos, como em Canção de exílio: “Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/ E ouvir um sabiá com certidão de idade”. 

 

No final da década, em 1939, conhece, em Lisboa, e torna-se amigo de Oswald de Andrade. No ano seguinte, inicia relações com Mário de Andrade, outra influência fundamental para que Vinicius repensasse as idéias do grupo católico carioca de A Ordem, que via nos modernistas um bando de “esquerdistas disfarçados de vanguardistas”. 

 

Mário escreve sobre o livro Novos Poemas: “O que há de admirável no poeta é justamente, em plena mocidade, ter conseguido autocrítica o bastante para reconhecer o descaminhamento, ou melhor, o perigo em que estava, e tentar se enriquecer de mais profunda, mais humana, mais pessoal realidade”. Vinicius dedicará, mais tarde, dois poemas para o autor de Macunaíma: A manhã do morto, do livro Poemas, sonetos e baladas; e Exumação de Mário de Andrade, de Poesias Coligidas. 

 

 

Poesia da primeira fase: desejo de absoluto e revolta 

 

 

A poesia da primeira fase de Vinicius, na qual podemos incluir Caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935), Ariana, a mulher (1936), além de alguns poemas e fragmentos dos livros de transição Novos poemas (1938) e Cinco elegias (1943), está impregnada de uma linguagem solene e cheia de ânsias de ascese espiritual, que guardam, sob as brumas místicas, uma sensualidade última. A mulher, durante essa estação poética, representa o ponto de interseção cambiante entre o anímico e o material, o que gera densa angústia existencial, e um tipo específico de delírio imagético, espraiando-se por versos cadenciados por intensa sonoridade e largo senso rítmico. 

 

Entretanto, o poema Revolta, de seu primeiro livro, curiosamente um soneto – gênero poético que enquadrará a mudança para a segunda fase da poesia de Vinicius -, indica já um caminho que aponta para algumas das marcas essenciais do poeta, melhor delineadas somente em sua produção posterior: a objetividade de expressão, ainda não de todo coloquial: “Alma que sofres pavorosamente/ A dor de seres privilegiada/ Abandona o teu pranto, sê contente/ Antes que o horror da solidão te invada”; a certeza de que trata-se de uma poesia que já não é contra a vida mas sim a seu favor; e a descoberta do chão do mundo, mesmo que trespassado de mistério, sinalizando possibilidades de felicidades: “Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste/ O mundo é bom, o espaço é muito triste…/ Talvez tu possas ser feliz um dia…”. 

 

E é regando essa muda da árvore da alegria, nascida do encontro, que a vida de Vinicius transcorrerá, sempre à procura do amor absoluto, totalizante, sobre-humano. Busca em eterno retorno que guarda em si a impossibilidade da concretização plena, e que traz, inevitavelmente, a dor do fim, da morte, latência silenciosa de novos inícios, cumprindo, assim, o ciclo corajoso da paixão. Em crônica incluída no livro Para viver um grande amor, escrito entre 1957 e 1962, Vinicius delimita o destino individual e social do poeta, usando termos caros a essa poesia da primeira fase: “…individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca do absoluto e, socialmente, um permanente revoltado”. O desdobramento desses conceitos em sua poética se entremostra no encalço lírico de uma mulher amada – agora encarnada, não mais etérea – que descerre os portais de experiências sempre passionais, e na poesia de cunho social, que florescerá tanto nos versos escritos quanto na oralidade neotrovadoresca das canções de Vinicius. 

 

 

Encontros fundamentais: elos da mudança

 

 

No intervalo de tempo entre seus dois primeiros livros, o poeta estabelece amizade com um boêmio que transita livremente por zonas culturais distintas da vida carioca de então, Prudente de Moraes Neto, o Prudentinho, a quem substituirá na função de censor cinematográfico do Ministério da Educação em 1936. Esse “mediador transcultural”, que, segundo Paulo Mendes Campos, presidia e harmonizava uma “complexa órbita” de relacionamentos diversos, apresenta-lhe Ismael Silva, fundador da primeira escola de samba – a Deixa falar. Vinicius logo estabelece amizade com o sambista, elevando o autor de Se você jurar, em texto escrito para a coluna Diz-que-discos, à condição de gênio criador: “seu nome estará ligado à crônica do samba carioca enquanto o mundo existir”. 

 

O convívio com o compositor popular do Estácio é fundamental – assim como os subsequentes encontros com mediadores eruditos como Manuel Bandeira (1936), Jayme Ovalle (1938) e Waldo Frank (1942) – para uma mudança radical do poeta em relação à sua obra e vida. Vinicius principia o lento e saboroso processo de incorporar o cotidiano em sua produção, recuperando ainda, das primeiras experiências da adolescência, a música popular como uma das linhas-mestras de criação. Transita pelo espaço das misturas, das trocas interativas entre mundos culturais, classes sociais e espíritos diversos, solidificando as bases para que viesse a se transformar no fundador de uma nova tradição na mpb: a de poetas inventores que bebem em fontes cultas e que negociam abertamente, sem fronteiras, com a cultura popular urbana de massas, tradição que terá em Chico, Caetano, Antonio Cicero, Arnaldo Antunes alguns de seus representantes posteriores. 

 

 

Manuel Bandeira e a poética do cotidiano 

 

Bandeira foi uma espécie de pai espiritual que descortinou a poética do cotidiano, as maravilhas da Lapa e do Mangue, as figuras boêmias do modernismo carioca para o metafísico Vinicius. Este pôde, enfim, encontrar na arte erudita alguém que realizasse na prática a síntese que sua alma almejava, mas que permanecia bipartida em sua poesia. O poema Saudade de Manuel Bandeira revela a potência desse encontro: “Não foste apenas um segredo/ De poesia e emoção/ Foste uma estrela em meu degredo/ Poeta, pai! Áspero irmão./ Não me abraçaste só no peito/ Puseste a mão na minha mão/ Eu pequenino – tu eleito/ Poeta! pai, áspero irmão.” Bandeira, desse modo, é o desencadeador do processo que descortinará o mundo, como material de poesia, para Vinicius, processo que proporcionará o amadurecimento de uma língua poética singular, vista pela crítica como um dos momentos líricos mais altos da moderna poesia brasileira. 

 

Segundo Otto Lara Resende, esse deslocamento de postura criativa em Vinicius tem início no instante em que o poeta “afasta a solidão” e luta contra o ressentimento. “Sua poética, como sua vida, abre-se para isso cordial e fraterna”. “Sem distinção entre o poeta e o homem”, pois, agora, “a matéria do poeta é a vida, com tudo que ela tem de sórdido e sublime”. Dessa forma, seu lirismo torna-se mais solto, com o poeta “multiplicando seus ritmos”, dando maior “flexibilidade musical aos versos”, como no livro Cinco elegias. 

 

Bandeira diz que neste livro Vinicius se mostra, enfim, nu, “aspirando sentir-se apenas homem, não poeta”, e ratifica essa afirmação citando o próprio poeta: “Estabelecendo um secreto acordo, uma promessa de socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida”. Para Manuel Bandeira, a linguagem poética de Vinicius tem “o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas), e finalmente, homem bem de seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos.” Sentencia ainda que o poeta carioca governa as palavras “com a destreza de um apache de tango, arranca-as da sarjeta para vestilas em toillete de baile, e eis que elas nos envutam menstruosamente belas”, tudo isso porque “sabe contagiar de lirismo as misérias da carne”. 

 

 

Jayme Ovalle, “filósofo do conhecimento do universo” 

 

O segundo encontro fundamental para a mudança que mencionamos anteriormente ocorre quando Vinicius se relaciona com a figura “fabulosa” de Jayme Ovalle – mudança mais significativa na esfera da vida, pois trata-se de um poeta conciso e praticamente sem obra. Tio do poeta Augusto Frederico Schmidt, tio Ioiô, como era chamado, Ovalle foi um boêmio inveterado, funcionário público exemplar, católico, músico erudito e popular, autor da melodia mais famosa feita para Azulão, letra de Manuel Bandeira. Afora isso, concebeu a insólita teoria da Nova Gnomonia e foi chamado de “filósofo do conhecimento do universo”. Conversando diariamente com seu anjo da guarda e certa feita se apaixonando, de verdade, por uma pombinha, representou para Vinicius a vitória incontestável da vida, do humor e do mistério, temas que passam a ser recorrentes em sua poética renovada. 

 

Em 1953, Vinicius realiza uma série de entrevistas com Jayme Ovalle para o Flan. O criador da Nova Gnomonia, por suas tiradas geniais, assume a partir de então, aos olhos do poeta, o status de encarnação do princípio poético, vida e poesia pulsando no mundo, sem necessidade de obra. Vamos a algumas palavras de Ovalle que, certamente, encantaram Vinicius: 1) sobre poesia e poetas: “a poesia é a coisa mais importante do mundo”, “todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser poeta porque perde a inocência”; “poesia é boa/ quando não vem/ É como namorada/ que olha da janela/ Apaga a luz do quarto/ e não vem”. 2)sobre o homem moderno: “Ah neguinho, aqui no Rio é muito difícil responder a essa pergunta. Esse negócio de homem moderno eu só poderia responder se vivesse em São Paulo”. 3) sobre a relação homem e mulher: “…no fundo são seres inimigos inseparáveis…”, “a gente vê que são inimigos porque o ato sexual é aquela luta romana entre os dois”. 

 

Quando Ovalle morre, Vinicius escreve: “Ovalle não queria a Morte/ Mas era dele tão querida/ Que o amor da Morte foi mais forte/ Que o amor de Ovalle à vida”. A grande lição que Ovalle transmite ao poeta: “quanto mais adverso o mundo se mostra, mais devemos rir dele”. 

 

 

Andanças com Waldo Frank: transculturações 

 

 

O terceiro elo da cadeia que joga definitivamente Vinicius em um novo universo poético-existencial é construído em 1942, com a viagem que realiza com o escritor norte-americano Waldo Frank. Este é um ano fulcral para a trajetória do poeta, pois ele começa a viver sua realidade tardo-modernista de turista aprendiz, dando os primeiros e decisivos passos para um conhecimento aprofundado do Brasil. Inicialmente, chefiando uma caravana de escritores a Belo Horizonte, onde trava contato com intelectuais como Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, que serão seus amigos pelo resto da vida. Depois, seguindo o esquema clássico de descoberta do Brasil dos nossos modernistas, em que é preciso que um olhar estrangeiro venha abrir os olhos de nossos artistas para o que está ao redor (vide, entre outros, o caso Blaise Cendrars em relação a Oswald e Mário), vive o encantamento pela cultura popular e sofre a violência da presença da miséria crua, tanto carioca quanto do nordeste, em incursões e viagens com o socialista Waldo Frank. 

 

No Rio, vai à Praia do Pinto, “imundo amontoado de barracos e de pobreza às margens da lagoa Rodrigo de Freitas”. Escreve uma crônica sobre sua experiência no local: “há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia – é Praia do Pinto. Há uma praia dentro de outra praia, uma onda vem bater, verde-azul, a onda oceânica, e outra onda vai desaguar o Rio escuro, em sua mais sórdida miséria”. Mas há o outro lado da medalha, a cultura popular urbana da festa e do samba que sobrevive nas favelas. Há os pés-sujos para encher a cara, as mulatas para admirar, as pastoras para ouvir. Música para ouvir: “Música de violões se contrapondo. Música de batucada na tendinha, música de Ogum no terreiro.” Vinicius e Waldo Frank terminam a noite numa roda de samba, completamente bêbados. 

 

Outra excursão pelo universo dos marginalizados, realizada pela dupla nas madrugadas cariocas, foi a ida à zona de prostituição do Mangue, na mesma noite em que o editor José Olympio oferece um coquetel de chegada ao escritor norteamericano. Vinicius escreve a primeira versão de seu famoso Balada do Mangue, após essa aventura: “Ah, jovens putas das tardes/ O que vos aconteceu/ Para assim envenenardes/ O pólen que Deus vos deu?” 

 

A viagem pelo nordeste dá de presente a Vinicius duas novas amizades, que lhe serão muito queridas pelo resto da vida. Na Bahia conhece – e se encanta com sua voz e modo de cantar – Cyro Monteiro, futuro amigo de boêmia nas noites cariocas e “símbolo de seu coração não-sectário”, no que diz respeito à polêmica divisão que se instaura nos anos 50/60 entre Bossa Nova e “samba de raiz”. 

 

No Recife, trava amizade com João Cabral de Melo Neto, com quem manterá uma troca afetiva e poética, a despeito do fato das dessemelhanças composicionais e de estrutura dos dois autores. Eduardo Portella, em estudo sobre Vinicius, talvez tenha matado a charada ao perceber o mesmo ímpeto de “despoetizar o poema” nos dois projetos artísticos (em Vinicius pela espontaneidade expressiva, em Cabral pelo rigor e esforço construtivo), afirmando que ambos, conscientemente, se desclassificaram de suas respectivas gerações. 

 

Mas é em Salvador que seu empenho de mediador transcultural aguça-se, ao assistir, pela primeira vez, uma batucada: “…nos sentamos no terreiro fora para ver a cerimônia da capoeira, melhor: o ballet da capoeira, pois aquilo é puro ballet.” “A batucada foi no dia seguinte…eram duas cuícas (uma grande e uma pequena), quatro tamborins (também de tamanhos diversos), um piano-de-cuia (instrumento de chocalhar), um pandeiro e um agogô”. “Foram duas noites inesquecíveis do meu conhecimento da Bahia e do Brasil”. Após essas aventuras de descobrimento do Brasil, Vinicius volta da viagem e emite uma frase que delimita nitidamente a natureza da mudança de rumos que a experiência lhe causou: “Saí do Rio um homem de direita e voltei um homem de esquerda”. 

 

 

Novos horizontes poéticos 

 

No ano de 1942 é aprovado para o Itamaraty e nasce seu segundo filho, Pedro (para quem comporá, nos anos 70, o musical infantil A Arca de Noé), após ter tido Suzana em 1940, junto com Tati, sua primeira mulher. Seu círculo de amigos, tanto na área da música popular quanto na área da cultura erudita, amplia-se sem cessar. O bar Vermelhinho, o Vilariño, o bar Esplanada, o Zeppelin, o Antonio’s são alguns de seus escritóriosbase, onde convive criativamente com os amigos e mantém seu universo de relações afetivas e produtivas em ação. 

 

Em 1945 sofre um acidente aéreo num hidroavião francês em visita ao Brasil, que criará nele um medo de avião que só será superado numa consulta a Mãe Menininha do Gantois, nos anos 70. 

 

Casa-se com Regina Pederneiras, sua segunda mulher. O casamento não durará muito, um ano depois é nomeado vice-cônsul em Los Angeles para onde se muda e onde ficará nos próximos cinco anos. Antes, porém, descasa-se de Regina e volta para Tati. 

 

Em 1946 é publicado o livro Poemas, sonetos e baladas, inaugurando a nova vertente da poesia de Vinicius, que terá seu complemento formal no Livro de sonetos (1957) e no livro Novos Poemas II (1959). Agora, com poucas exceções, a métrica se torna praticamente regular. Com o olhar transformado pela maior aproximação dos fenômenos da realidade mais imediata, a poesia engajada de Operário em construção (1955) vem a lume, ao mesmo tempo em que começa a dedicar-se mais intensamente ao cancioneiro da música popular. O poder de comunicação e sedução característicos da linguagem poética de Vinicius, junto ao coloquialismo de linhagem bandeiriana, se expandem até o limite, atingindo, principalmente nos sonetos e baladas, segundo Ivan Junqueira, “o melhor de si e, talvez, de toda a poesia que se escreveu em seu tempo.” 

 

E é nessa segunda fase de sua poesia que Vinicius produzirá seus poemas mais maduros e límpidos e, talvez por isso, os mais populares. Senão, vejamos, numa rápida antologia. Soneto da Fidelidade: “Eu possa me dizer do amor (que tive)/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.”; Balada das meninas de bicicleta: “Meninas de bicicletas/ Que fagueiras pedalais/ Quero ser vosso poeta!”, “Ao sol de Copacabana/ Centauresas transpiradas/ Que o leque do mar abana.”; Poema de Natal: “Por isso fomos feitos:/ pra lembrar e ser lembrados/ Para chorar e fazer chorar/ Para enterrar os nossos mortos -/ Por isso temos braços longos para os adeuses/ Mãos para colher o que foi dado/ Dedos para cavar a terra.”; O dia da criação: “Hoje é Sábado, amanhã Domingo/ A vida vem em ondas, como o mar…”; Soneto da separação: “Fez-se do amigo próximo o distante/ fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente.”; Receita de mulher: “As muito feias que me perdoem/ Mas beleza é fundamental.” 

 

 

A música popular: “Bordões, primas/ Falam mais que rimas” 

 

 

Durante sua estada em Los Angeles, Vinicius resgata paixões antigas e descobre outras novas. As amizades com o cineasta Orson Welles e com o crítico de cinema Alex Viany recuperam para o poeta a paixão de sua juventude pela sétima arte e pelas críticas escritas para jornais no Rio. O contato com a música americana desperta nele uma nova paixão avassaladora: o jazz. Numa crônica intitulada O que é o jazz?, se arvora a responder à pergunta para uma leitora que a formulara: “é justamente esse galo que você ouviu cantar e não sabe onde.” Ironicamente, parece se interessar pelo hot jazz de Louis Armstrong, quando, no futuro, será o cool jazz que influenciará a Bossa Nova. Mas logo entenderemos tal preferência quando coloca a música popular norte-americana sob o signo da revolta e da força dos negros: “Jazz é a voz solitária ou polifonia da revolta, da sensualidade, do ‘pathos’ dos negros e se prolonga através dos instrumentos musicais desobedientes a tudo que não seja espontaneidade, invenção, improvisação.” 

 

Nos EUA, tem contato com o Bando da Lua, com o violonista Laurindo de Almeida, a quem louva pelo fato de ser “um brasileiro de espírito público – ave tão rara nos dias que correm – que trabalha por sua terra longe dela e sempre coloca acima de tudo o seu coração.” Frequenta a casa de Carmem Miranda, para quem toca Azulão de Ovalle e Bandeira ao violão, e sobre quem escreve as seguintes linhas numa carta para o poeta de Libertinagem: “A casa de Carmem é muito hospitaleira e eu a cada dia gosto mais dela. Ela é um amor de pessoa, Mané, com todas as bananas na cabeça e extravagância que usa, me chama de Vesúvio, coisa que me derrete.” 

 

Retorna ao Brasil em 1950 e no ano seguinte casa-se com Lila Bôscoli, com quem tem as filhas Georgina (1953) e Luciana (1956). No ano de 1951, enceta amizade com o compositor e poeta Antonio Maria, grande companheiro de boêmia. Na composição de seu primeiro samba sozinho, em 1953, dá parceria ao amigo. Antonio Maria está na linha dos compositores advindos das classes médias e altas com os quais Vinicius teve contato e compartilhou criações. Esta linha, mais tarde, terá continuidade nas parcerias com Ary Barroso e com os músicos da Bossa Nova. 

 

Contudo, apesar de saber que a “a música popular, como tudo no mundo, não pode ficar parada: tem que evoluir, involuir, moverse enfim”, e que seria uma contrafação pedir “a um Antonio Maria, a um Luis Bonfá, a um Paulinho Soledade, a um Fernando Lobo que façam samba de morro”, Vinicius jamais deixou de defender e de se interessar em compor com compositores do dito samba de raiz, pelo qual “…os compositores populares têm-se dado as mãos numa intuitiva defesa do que é carioca.” Sem contar com o fato de que diz só ter um ídolo na vida, Pixinguinha, “o melhor homem que conheci”, com quem compôs, em 1962, doze músicas para a trilha sonora do filme O sol sob a lama, de Alex Viany. 

 

Em 1953 muda-se para Paris como segundo secretário da embaixada do Brasil. Em 1955 escreve letras de canções eruditas para o maestro Cláudio Santoro. Em 1957 transfere-se para Montevidéu. Em 1958 casa-se com Lucinha Proença. No ano de 1959, Orfeu do carnaval, a adaptação cinematográfica feita por Albert Camus de sua peça teatral, ganha a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 1960 retorna ao Rio para servir na Secretaria de Estado de Relações Exteriores. 

 

 

A Bossa Nova, Tom e outras parcerias 

 

A década de 50 significou, principalmente, o começo das parcerias com Tom Jobim, que desencadearam o movimento da Bossa Nova, do qual foram – junto com João Gilberto – os fundadores oficiais. Vinicius vai se entregando, cada vez mais, à música popular. Na casa dos quarenta, o poeta está em crise de identidade, não suportando mais a imagem de diplomata de carreira, querendo a dessacralização total da arte e da vida. Via na Bossa Nova a mesma importância para a música popular que a semana de 22 tivera para a literatura. Não acreditava mais no formalismo e cerebralismo da poesia de então, cujo último verdadeiro poeta, a seu ver, era João Cabral (em 1974 mudará de opinião com a leitura de O poema sujo, de Gullar, que resgata nele o amor e o interesse pela poesia livresca). 

 

A primeira grande empreitada da dupla Tom/Vinicius foi a peça Orfeu da Conceição, exibida no Rio em 1956, com cenários de Oscar Niemeyer e cartazes assinados por Djanira e Carlos Scliar. A montagem também gerou uma quebra importantíssima de tabu: foi a primeira vez que atores negros, procedentes do Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, pisaram nos palcos do Teatro Municipal. Em 1960, o presidente Juscelino encomenda-lhes a criação de uma Sinfonia da Alvorada, para ser apresentada na inauguração de Brasília. Antes e depois desses dois projetos de fôlego, muitas parcerias e marcos da Bossa Nova surgirão como, por exemplo, a composição, em 1962, de Garota de Ipanema ou a criação das músicas para o disco de Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, de 1958, em que aparece pela primeira vez gravada a batida inovadora de João Gilberto, gênio essencial do movimento bossanovista. 

 

Nos anos 60, seus dois principais parceiros foram Carlos Lyra e Baden Powell, embora tenha composto também com Edu Lobo e Francis Hime. Baden Powell foi o parceiro que levou Vinicius de volta ao samba de raiz, sem perder o viés culto conquistado nos trabalhos anteriores. A música de tradição negra africaniza as melodias dos meninos classe-média da zona sul carioca, que formaram a base do movimento da Bossa Nova. Entram em cena o candomblé, orixás, capoeiras, sambas de roda e magias, recuperando assim os interesses de religiosidade de Vinicius em outro contexto, agora nas regiões místicas da fé afro-brasileira. 

 

Já com Carlos Lyra, com quem compôs de 1958 a 1963, o poeta se identifica com a “falta de preconceitos” musicais do parceiro. Fazem juntos o musical Pobre menina rica e canções clássicas da Bossa Nova como Minha namorada, Coisa mais linda, Primavera e Você e eu. Surgem também parcerias de cunho político como o Hino da UNE ou a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, compostas às vésperas do golpe militar de 1964. 

 

Em 1963 casa-se com Nelita de Abreu Rocha e vai para Paris, onde será delegado do Brasil junto à Unesco. Em 1964, regressa ao Brasil e inicia sua carreira de showman num espetáculo histórico em que dividia o palco com Dorival Caymmi (quando se refere ao baiano chama-o de “sábio”). Em 1968 sua mãe falece; casa-se com Cristina Gurjão. Em 1970 nasce Maria, sua filha com Cristina; no final do ano casa-se com Gesse Gessy, em Itapuã. 

 

 

A tonga da mironga do cabuletê 

 

 

Nos anos 70, o seu principal parceiro é Toquinho, com quem trabalhará sistematicamente até a morte, compondo ainda por esse período com Chico Buarque e Fagner. Vinicius chama as músicas feitas com Toquinho de “músicas em trânsito”, concebidas “em plena pressão cotidiana”, “no improviso absoluto”. Surgem clássicos como São demais os perigos dessa vida, Carta ao Tom, o musical A arca de Noé. Faz crítica aos militares, a partir de uma frase em nagô, A tonga da mironga do cabuletê, no melhor estilo da linguagem cifrada que os tempos de ditadura pediam. Mesmo assim, a crítica da época insistia em chamar a música deles de “easy music”, “confundindo música simples com música fácil”. 

 

Nessa década, algumas linhas de força esboçadas nos anos anteriores são desenvolvidas com mais intensidade, ao mesmo tempo em que surgem novas linhas de fuga na vida e na arte de nosso inquieto poeta camaleônico. Questões políticas, de misticismo afro-brasileiro, de livre negociação com instituições comerciais de cultura de massa e de construção de uma carreira no exterior adensam-se. Por outro lado, a vivência do hippismo e de um casamento “aberto” em seu “exílio” baiano, após abandonar a “fase erudita” e o terno e gravata assim que é compulsoriamente aposentado do Itamaraty, por meio da caça às bruxas levada a cabo pelo regime militar, são as novidades em sua vida. 

 

As questões político-sociais surgem de modo explícito, pela primeira vez na obra de Vinicius, com Operário em construção. Faz leituras do poema em 1963 em São Paulo, no Teatro Paramount, e em 1979 no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a convite de Lula. Num espetáculo em Lisboa, após o decreto do AI-5, lê o poema Pátria minha, que vira símbolo de liberdade no país com a eclosão da Revolução dos Cravos. 

 

A face complementar dessas leituras são os shows em diretórios acadêmicos estudantis, de modo esporádico no início dos anos 60, com Baden e Lyra, de modo sistemático nos anos 70, com Toquinho. São apresentações feitas em esquema mambembe, lotando ginásios e teatros pelo Brasil afora. Contudo, não quer ser chamado de poeta político, pois crê que poemas feitos por encomenda não são viscerais, são artificiais, sem verdade: “Não adianta você querer fazer poesia política de propósito. O poema tem de nascer de tua revolta”. 

 

As questões religiosas ganham conotações diferentes daquelas que eram comuns em sua formação jesuítica – que, vez por outra, voltarão a visitar a sua vida em forma de visões, presságios e angústias metafísicas-, ao casar com Gesse Gessy, filha de santo baiana, mística e “primitiva”, adotando o candomblé como religião. Seu interesse por esse universo vinha desde os tempos das parcerias com o violinista Baden Powell. Agora, no entanto, incorpora a “exuberância de deuses” e a “ausência de culpa e pecado”, que é atribuída à crença afro-brasileira. 

 

Vinicius, nadando contra a corrente de seu tempo, e sofrendo muitas críticas e patrulhas ideológicas por essas posturas, assume aparecer nos meios de comunicação de massa (a tevê era olhada com grande desconfiança por boa parte dos intelectuais de esquerda de então) e desenvolver uma carreira artística com retorno financeiro no exterior. Tais atitudes somente serão vividas sem culpa pelos artistas brasileiros nas décadas seguintes. Nos anos 60, com Baden, faz a trilha de A morta sem espelho, novela da TV Rio baseada em história de Nelson Rodrigues. Nos anos 70, em parceria com Toquinho, produz as trilhas para as telenovelas Nossa filha Gabriela, O bem-amado e Fogo sobre terra. Quanto à carreira no exterior, após as referências fundamentais do filme Orfeu do carnaval e do megasucesso Garota de Ipanema, seu trabalho conquista Portugal, Itália, França, Argentina e Uruguai, expandindo-se sensivelmente. 

 

Das experiências novas que vive em sua “fase baiana” – época de utopia e desbunde contracultural, vivíssimos nas dunas de Itapuã e Arembepe, “fronteiras do hippismo no Brasil” -, podemos citar o uso de batas brancas, cabelos compridos, cordões místicos e a liberdade sexual que experimenta no casamento. Depois dessa união, que termina por ser sufocante para o poeta de Soneto de Fidelidade, Vinicius ainda se casa com a argentina Marta Rodriguez, entre 1976 e 1977 e, finalmente, com Gilda Mattoso, de 1978 até sua morte em 1980, na Gávea, de volta ao Rio após tantas aventuras pelo mundo. 

 

Vinicius viveu a vida até o limite, exercendo a sua “arte de estabelecer contatos”, presente em cada pequena atitude, em cada novo amor e amizade, em cada nova premonição ou surpresa. Drummond escreveu: “Vinicius realizou a figura mais exata de poeta que já vi na minha vida. Poeta em livro, em música, e poeta na vida”. Ou será que, quando tal fenômeno se realiza com beleza e paixão no mundo, tenderemos a dar-lhe, talvez por excesso de zelo ou respeito, o sagrado nome de poesia? 

 

 

Biografia feita, originariamente, para o projeto Arquivinho do Poeta – Vinicius, concebido pela minha querida amiga, já falecida, Lélia Coelho Frota, grande poeta da Geração de 45 no Brasil, então diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Depois este texto original foi republicado pela editora Bem-te-vi Produções Literárias, no ano de 2013. Agora a biografia Vinicius, poeta do encontro, foi revista e ampliada exclusivamente para este número da revista InComunidade.

 

 

 

André Gardel é brasileiro, nasceu em Canoas – RS, em 02/10/1962. Com dois anos de idade vai para o Rio de Janeiro, cidade onde mora até os dias de hoje. Além de escritor, é compositor de música popular e Professor Associado II do Curso de Letras e do PPGAC (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas) da UNIRIO. Publicou 12 livros (de ensaios, dramaturgia, biografia, poesias, contos, didáticos), recebendo o Prêmio Carioca de Monografia de 1995 por O encontro entre Bandeira & Sinhô; e lançou os CDs Sons do Poema (1997), Voo da Cidade (2008), lua sobre o rio (2014) e Na palavra (2019). Irá publicar proximamente o romance A viagem de Ulisses pelo Rio Amazonas.

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