Cultura

Uma epifania narrativa | Ronaldo Cagiano

As diabruras de Orfeu” (Ed. Lacre, Rio, 2020), de Paulo Martins, escritor brasileiro (nascido em Ipiaú, Bahia) radicado em Portugal, sequencia um projeto literário iniciado com “Glória partida ao meio” (2010) e “Adeus, Fernando Pessoa” (2014), editados pela 7Letras, do Rio, no qual, entre a invenção e a memória e tendo como pano de fundo a histórica recente do Brasil, suas lutas políticas e os movimentos artísticos, o autor realiza uma imersão crítica e reflexiva na realidade do país.

 

               Ao apropriar-se do mito de Orfeu e Eurídice, Martins escreve uma obra de natureza híbrida, em que o cunho memorialístico, confessional ou autobiográfico, a crítica política, a reflexão filosófica, o flerte metafísico e o ensaio sobre o mundo musical e cultural compõem-se numa atmosfera de profunda simbiose, abrindo picadas no cipoal de uma imersão existencial de intensa e densa polifonia.

 

              Escrito nos moldes de uma sinfonia, os cinco capítulos que enfeixam a obra anunciam-se, em icônicas partituras, como movimentos de uma orquestra, em que os episódios desdobram-se num crescendo, em cujas notas deslinda-se a harmonia (ou desarmonia) de uma trajetória individual e coletiva, percebendo-se todos os acordes e dissonâncias de um tempo premido por circunstâncias que afetaram a vida do protagonista e personagens, bem como contenciosos e episódios marcantes na história de um país e de um povo.

 

              Ao narrar as aventuras e desventuras, os sonhos e frustrações de um personagem que abraçou a luta política desde cedo com a mesma paixão que nutriu pela música, Paulo dá voz a uma investigação sobre os caminhos, os dilemas, os paradoxos, contradições e diatribes que conformam a própria condição humana. Entre o sonhado e o vivido, na fronteira entre o onírico e o real, contam-se as diabruras de um ser inquieto, motivador pela busca de sentido na arte e na vida e que, entre a utopia e as derrocadas, teve na música seu espaço de deambulação e devaneio, a única instância em que pôde exercer fielmente a sua liberdade de comunicação e expressão.

 

              Acometido desde cedo por uma limitação auditiva e também déficit visual, por força das torturas e sofrimentos impingidos nos porões da ditadura, o autor-narrador, ao confrontar-se com a impossibilidade de ser um compositor, tornou-se um exímio e sofisticado expert em música, cuja obsessão não se exauriu com a interdição provocada pelas sevícias da prisão, mas transformou-se em leitmotiv de toda uma vida, o espaço íntimo de resgate de um talento precoce que nunca se sucumbiu às contingências políticas e outros incidentes e passivos que afetaram sua vida. 

 

             “As diabruras de Orfeu”, transcende a projeção ontológica intrínseca ao espírito da obra, para traduzir-se numa delicada homenagem à mulher e ao amor (ou às suas dores e conflitos), temas recorrentes nos universos criativos de Jacques Brel, Chico Buarque e Vinícius de Morais, sobre os quais o autor se debruça com denodado mergulho prospectivo, identificando conexões, percebe afinidades estilísticas, rastreia analogias temáticas, disseca e escande, a partir dos registros e arquétipos das canções que reproduz ao longo da obra, as filiações estéticas e influências que se comunicam entre esses três virtuoses da música contemporânea e que constituem referência predominante em sua ambiência ao mesmo tempo musical e literária, delineando as vinculações com outras linguagens que frequentam seu imaginário e sua mitologia pessoal, como o teatro, o cinema, a ficção e a poesia. 

 

                 Como enfatiza Ricardo Cravo Albin, um epígono da mais respeitada crítica musical brasileira, “o autor também esgrime, e deposita aos pés do leitor, alentada cultura musical e literária, em especial a helênica, a dos mitos e das assombrações, a do épico da música e da morte, da vida e do amor”. É nesse empenho de inigualável beleza plástica que Paulo Martins oferece ao leitor um concerto narrativo em cuja linguagem de sofisticada carpintaria, recursos poéticos e primazia estilística, que mescla o sinfônico e o camerístico, o erudito e o popular, a tradição e a vanguarda, culminando num momento de rara epifania.

 

 

Trecho:

“Buscava então uma explicação para as travessuras de minha imaginação na própria tragicidade do mito que, apesar disso ou por isso mesmo, me parecia ser o mais profundo canto de esperança e de harmonia para a humanidade. Os dois núcleos centrais de sua história – a morte de Eurídice, com a tentativa posterior de Orfeu de resgatá-la do mundo das sombras e a morte do próprio Orfeu – deviam guardar a chave do mistério desse declínio que eu enxergava como uma desgraça que ameaçava nosso tempo.”

 

Ronaldo Cagiano: Escritor brasileiro, vive em Lisboa

 

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