Cultura

Travelling sem ensaio para Demétrio Panarotto | Fernando Floriani Petry

 

Travelling

 

sem ensaio. Em um primeiro movimento, partimos da impressão de que Demétrio Panarotto convida-nos a conhecer sua poesia no improviso, quase que no susto, sem bastidores ou repetições, enfim, sem ensaio. Um gesto que pode ser encarado como uma recuperação e uma reativação da estratégia – guerrilheira – do Cinema Novo brasileiro, uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Sem dinheiro, sem roteiro, sem produção, sem ensaio.

 

Aos poucos, porém, ao reunir indícios e piscadelas que Demétrio oferece-nos ao longo da leitura, percebemos a malícia de um convite muito bem ensaiado. Um convite à viagem, ao travelling. Ou ainda, um convite a desfazer a viagem. Um convite a desfazer a travessia, seja ela a travessia de Xenofontes, o grego, em seu barco de areia, a travessia do atlântico que trouxe a lusofonia às terras brasilis, a travessia de Glauber Rocha pelo sertão, a travessia de Blaise Cendars na poesia moderna brasileira, ou mesmo a travessia euclidiana na descoberta dos sertões. Aos poucos vamos a descobrir, sem ensaio, a vida como ela é. O sertão como ele (tom z)é. E sobretudo, Demétrio Panarotto como ele é, nesse sertão eu de sua cidade natal, Chapecó.

 

Intrigados pela leitura que nos exige fôlego e respiro, proximidade e distanciamento, percebemos enfim qual papel o poeta espera que assumamos nessa tragicômica leitura de uma travessia brasileira, do sertão ao mar: o papel de asmodée, esse deusertãodiabo, enxerido como sempre, enxerido com o cão. Panarotto nos faz nos transfigurarmos nesse diabo manco que, no romance Le diable boiteux de Alain-René Lesage, acompanha o estudante don Cléofas Léandro Perez Zambullo pelos telhados de Madrid, a levantar as coberturas e espi(on)ar o que ali se passa. E ao levantar os telhados dessa poesia sem ensaio, percebemos as linhas mestras da poesia de Panarotto que piamente amarga(m) o sentido das coisas.

 

sem ensaio é um livro que nos permite então levantar o telhado da cabeça do autor, percorrer sua biblioteca, (re)conhecer em um jogo caça gato e rato suas referências (as explícitas e as que ele faz o esforço de esconder), ver as questões que pre-ocupam o professor, o poeta, o pai, o brasileiro, o latino, o humano. O professor nas querelas da vida que embaralham as linhas do crime e da loucura. O poeta tal o Cadillac 1960

 

que desgobernado

encuentra en el viento el sentido del verso

y abraza el poste

de energía eléctrica.

 

O pai, olhando de revesgueio para o futuro. O brasileiro, que

 

na pobreza

cultural do país é

aquilo que vem de dentro

do espavento

 

O latino, sempre atravessado pela presença – fantasmagórica – do espanhol, na palavra palabra e que na latinidade de seus medos não escolhe nada além de dançar. Enfim, o humano, que às vezes simplesmente precisa cochilar.

 

Nesse diabólico levantar de telhados podemos entrever o travelling que percorre a poesia de Panarotto para chegar até aqui, chegar até esse livro que, sem ensaio, condensa e carrega a presença de uma já vasta obra publicada até então, quase um livro de prestação, um livro de apresentação.

 

O que vemos enfim ao levantar a cobertura é o poeta roteirista, que na listagem de seus personagens, no desenrolar da sua dança, no confronto do oco com o eco carrega uma obsessão que ressurge tal qual diabo: nos detalhes. Mesmo nos detalhes mais ínfimos (teria sido um ato-falho?): se juntarmos as primeiras palavras dos únicos três poemas cujos títulos aparecem em maiúsculo teremos A Ser Cinema, ou seria hacer cinema?

 

Apresento-lhes Demétrio Panarotto, cineasta. sem ensaio.

 

Fotografia de Fernando Floriani Petry

 

Fernando Floriani Petry ensina literatura, cultura e língua lusófonas na Université Lumière Lyon 2 na França desde 2016, depois de ter feito tese no nelic, o núcleo de estudos literários & culturais da Universidade Federal de Santa Catarina sobre as políticas culturais oficiais dos anos 40 e 50 no Brasil.

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