Cultura

Totem-esplendor | Bárbara Lia

Poesia é aquilo que me faz rir, chorar ou uivar, aquilo que me arrepia as unhas do dedo do pé, o que me leva a desejar fazer isso, ou aquilo, ou nada.

Dylan Thomas

 

Totem-Esplendor

 

Fizeram de mim 

Um totem estranho

Colaram à madeira 

– Meu corpo hirto –

Escarros e pirilampos

Fui – as poucos – vestida

De todo céu/inferno

– Receptáculo –

Aprendi que há amplidão

Apenas no Amor

Amor é o nome do meu Deus

Lá eu estava – Virgem –

Erguida em uma planície

Deserta

Totem ao vento

Aceitei as colagens várias

Ódio ressentido

Disfarçado de rio cálido

Flores pequenas

Colhidas nas encostas

Odes toscas

Escritas em sacristias

Beijos sem amor

De homens engalanados

De fúria

Cicatrizes de anjos

Rosários de mulheres pudicas

Palavras de ordem

Embaladas em leis avaras

Uma capa da cor do Monte Fuji

Elogios ensimesmados

Invejas diluídas em licor de fel

Ah! Também despejaram – Amor

Beijos verdadeiros da minha chama gêmea

Beijos puros das crianças hereditárias

Nunca quis selecionar cada decalque

Pregados no tronco escuro e hirto

Minha carne

Meu ser libertário

Queria abraçar o Mundo

E só restou um totem nonsense

Até que – finalmente – percebi

Eu posso!

Sim, posso decidir

O que colar em meu corpo

Eu posso vestir apenas

Amor e Ciência

Comecei a descolar a profanação rude

Tatuagens de Não/Amor

 

Demora um tempo ainda

Para que um dia eu seja

Um Totem-Esplendor

 

 

A rosa tísica

 

Como o sábio que se recolhe 

Para avaliar o abissal mistério

Altas estrelas e eventos

A mudança dos ventos

O tempo a brincar de cabra cega

A boca costurada com o fio cruel

Das coisas inadmissíveis

 

Como o sábio que se fortifica

Para a grande viagem

Depois rompe vales

Cruza rios 

Ajoelha-se no altar 

Da flor mais alta

Eu me ajoelho a esperar

Sua luz que me falta 

Como o sábio que espera

Por respostas truncadas

– Como se houvesse –

A murmurar uma prece
– Entre lágrimas –

Enquanto sopra a rosa tísica

Ferindo-a ao inundar de vida

Suas pétalas esturricadas

 

No ventre da besta

Cansada de mastigar e engolir luz

Sem vomitar a podridão e o negror

Dentro de mim este enfrentamento

Cruel: maniqueísmo de substâncias

Em um sítio repleto 

De canibalismo emergente

Onde um só quer comer 

O ventre cru do outro

Nada é rouge rojo escarlate sangue e bandeiras 

É só uma Nação fake de flores ocas que morrem

Antes, arranham seus longos rabos espinhentos

Em peles silenciosas que abrigam sóis & bemóis

Era só para dizer que estou cansada

Mas a poesia gosta de usar-me com sua espada

No fundo, no fundo, a poesia retalha mais

Que rosas mortas, pessoas afoitas para matar

A aurora, a luz, o amor e tudo que me alimenta 

Nada podem contra a eternidade desta cruel placenta

 

The Hawk in the rain* 

 

Somos falcões na chuva, impedidos de voar. O amor é uma chuva granítica, congela os ossos, paralisa o sangue e estanca o passo. O amor assusta mais que qualquer maldição ou peste. O amor, esta batalha que faz do homem um falcão molhado, cabisbaixo, sem asas… Amar é estender as asas e alcançar além de infinitas nuvens… Congelamos com a chuva do amor, e bloqueamos o voo. Voar com as asas leva até onde o olhar alcança… Voar com a alma é um voo para uma paisagem desconhecida… Temos tanto medo do desconhecido, quanto da felicidade. Sempre penso em Camus e em um pequeno trecho do livro – A peste: Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber. 

 

* Primeiro livro de Poesia do poeta Ted Hughes.

 

Fotografia de Bárbara Lia. Autor da foto: Daniel Castellano.

 

Bárbara Lia nasceu em Assaí (PR). Professora de História, Poeta e Escritora. 

Publicou vários livros, entre eles: O sorriso de Leonardo (Kafka ed. baratas), A última chuva (Mulheres Emergentes), O sal das rosas (Lumme), Solidão Calcinada (SEEC- PR/), A flor dentro da árvore (ed. da autora), Forasteira (Vidráguas), As filhas de Manuela (Triunfal.), Não o convidei ao meu corpo (Ed. Kazuá). 

Participou de várias antologias, entre elas: Amar, Verbo Atemporal – 100 Poemas de Amor – Org. Celina Porto Carrero (Rocco). Fantasma Civil – Org. Ricardo Corona (Bienal Internacional de Curitiba 2013). Arqueologia da Palavra e Anatomia da Língua – Org. Amosse Mucavele (Maputo). As mulheres poetas na Literatura Brasileira (Arribaçã, 2021), Org. Rubens Jardim. 

Destaque em vários prêmios literários. 

Vive em Curitiba.




Qual é a sua reação?

Gostei
2
Adorei
2
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura